quinta-feira, março 21, 2013

A NOSSA FALADURA - CXCIV - CAMBALHÃO


O domingo imediatamente seguinte à lua cheia imediatamente seguinte ao equinócio da primavera - o de Páscoa - estava já próximo. Naquele ano dos finais de 60 os dias andavam primaveris e era tempo de caiar a casa. Ti Arminda Malagota desceu ao palheiro onde dormia a burra andorinha, e depois de atirar com um braçado de feno para a manjedoura, para acalmar a burranca que resfolgava excitada, desviou cuidadosamente uma pedra da parede, deixando ver um buraquinho com a abertura suficiente para ela lá introduzir a sua mão. De lá retirou uma bolsinha da qual escolheu 3 moedas de 5 escudos que enrolou no lenço das mãos e voltou a colocar a pedra no sítio que se encaixou na perfeição. Nunca ninguém iria conseguir perceber que ela escondia ali uma bolsinha de linho com notas e moedas que somavam mais de 50 contos de réis. E foi-se a caminho do povo, à loja da Ti Rosa do Cunha a comprar 2 quilos de cal branca que havia de desfazer em água num velho caldeiro de lata mexendo cuidadosamente com um changoto limpo, numa proporção de 1 de cal para 3 de água como a sua mãe lhe tinha ensinado, até obter uma solução cor de leite que deixaria em repouso até ao dia seguinte.

Logo à entrada, do lado esquerdo, a sua casa tinha uma pedra rectangular –a pedra dos cântaros - com 1 metro por 40 de fundo, encrustrada na parede à altura da boca do corpo, sobre a qual estavam sempre dois cântaros de barro – os asados  -  que no Verão forneciam uma água mai fresquinha que eu sei lá! e nos espaços à volta deles, ela ajeitava a sua colecção de antiguidades: um candeeiro de lata que lhe deu o primo Pantelhão, um lampião antigo que herdara do pai que tinha herdado do pai, três molídias, quatro cabaças envernizadas e uma colecção de outras peças em madeira que o seu homem, Manel Malagoto, se entretinha a fazer nas noites chuvosas de Inverno: cangas, chambaris, arados, tropessos, carros de bois. Juntou tudo no batorel do lado de fora e meteu-se a esfregar vigorosamente as paredes com escova de arame e lixívia.

Havia de fazer o mesmo na lareira. Esfregou a panela de ferro, as trempes, o pucheiro e o caldeiro da vianda com palha de aço, varreu cuidadosamente a cinza da pieira, aquela para onde as filhas, quando eram garotitas, deitavam os dentes que lhes caíam e recitavam “pilhêrinha, pilhêrão, toma lá este dente podre e dá cá um são”,  sempre a cantarolar uma cantiga que tinha ouvido, em garota, ao Ti Mné Ceguinho, e que falava de um tuberculoso que queria bem a uma rapariga fina, filha do regedor, um amor não correspondido que acabava em tragédia com o rapaz a suicidar-se depois de matar a autoridade local e a filha fina. A cinza, guardou-a num caldeiro de lata farrusco, com ideia de a botar na leira dos alhos.

Já o astro caía atrás da Gardunha quando lhe aparece João Tramoço que vinha pelo pagamento da cava da vinha. Nesta altura do ano, o Tramoço ganhava uns tostões cavando vinhas ao cambalhão, técnica antiga adequada nos vinhedos em que as videiras estavam dispostas de forma irregular. Algumas semanas mais tarde, seria preciso arrasar os cambalhões por forma a que o terreno ficasse novamente direito. Desta forma, a terra arejava e eliminavam-se as ervas.

O Tramoço ajustava o preço consoante a área e o tipo de terra e, entre duas borracheiras, aos poucos ia deixando as vinhas pejadas de pequenos montes de terra. Depois de ter suado durante a manhã daquele sábado a cavar a vinha do Mnel Malagoto apresentava-se para receber o combinado, que havia de ser trocado por vinho nas tabernas do Cavalheiro, do Zé Rolo, do Fatela e do Xico Miguel, durante o domingo.
O Malagoto que se dedicava a mudar a cama da andorinha assoma à porta do palheiro: 
- Eu pago-te mas só quando fores a desfazer os queijos que lá deixaste. Atão aquilo é trabalho que se faça?
Durante a tarde ele tinha passado na vinha e não aprovara o trabalho do Tramoço que, para despachar a empreitada e receber a paga, saltara os espaços onde não havia erva.
- Mintira!, defendeu-se o Tramoço.
A discussão foi azedando até que o Tramoço decretou:
- Ai no me quer pagar? Atão vai a ver, vou lá e desfaço os cambalhões todos.

1 comentário:

Unknown disse...

Boa noite. Podem explicar-me o que é um batorel? Agradeço,