sexta-feira, março 08, 2013

A NOSSA FALADURA - CXCIII - CALACEIRO / CALACEIRÃO

Domingos Lucho vivia como um eremita. A casa onde morava tinha uma única divisão, era construída em granito e o telhado era a telha vã. Ao canto direito acendia o lume. Umas cadeias caíam de um barrote e pendurada no gancho estava sempre uma panela de ferro que lhe servia para todas as confecções culinárias. Encostada à parede, à direita da porta tinha a cama de ferro que nunca fazia « porque não era preciso». Na outra metade da casa guardava batatas, sempre cobertas com folhas de eucalipto e com vagens de piripiri espalhadas por toda a superfície, «por mor da borboleta», cebolas, alhos, feijão, grão e o mais que a terra dava e pudesse ser conservado, para além, é claro, do pipo do vinho e de um pequeno pote com azeite. A água era de uma mina e retinha-a numa charca donde regava tudo a pé. Lá tinha sempre o garrafão do vinho «porque no inverno a água é quente e no verão é fresquinha» Tinha também um escoreiro com azeitonas curtidas e uma pequena salgadeira onde conservava toucinho branco alto, base fundamental da sua alimentação carnívora, pelo menos até aí os seus 60 anos, altura em que morreram uns poucos da sua idade com "trombosas" e ele decidiu cozer o toucinho para o Farrusco, cão e companheiro, para além de caçador de algum coelhinho de vez em quando. Ele próprio era atilado para a descoberta de luras e camas de lebre e brandia o junco com destreza razoável. Da dieta faziam também parte, quando os descobria, alguns texugos porco e ouriços machos, «que as fêmeas quando andam com a rabeca podem matar um homem, as putas». No Verão, a ementa era um pouco mais variada com alface, tomate, pepino, pimento; de inverno, invariavelmente couve, depois grelos, feijão e grão. À sucapa, agarrava uns passarinhos, mas tinha que camuflar bem os costis e visitá-los amiúde « por mor dos gatos e dos milhanos». Vivia com o sol: de inverno até lhe doíam «as cruzes» de tanto ficar deitado para não gastar lenha, mas, de verão, dormia menos de noite « para poder fazer a horta pela fresca» e, na hora do calor, ferrava-lhe uma sesta à espanhola.
Tinha duas artes em que era exímio: vedor e enxertador. Era consultado por todos os que queriam abrir um poço e a sua fama estendia-se a aldeias vizinhas. Cobrava 50 mil réis por consulta. Tanto lhe dava testar a veia da água com uma vareta de arame zincado como com uma vergôntea de zambujo, oliveira ou até marmeleiro e mimosa. Fosse o que fosse que usasse a verga retorcia-se com força diferente o que indicava o caudal provável do nascente e a sua orientação. «Os melhores nascentes são os que vêm do lado do sol posto», garantia, e corria todo o espaço, fazia riscos e, onde cruzavam, marcava o sítio exacto para abrir o poço.
Quanto às sua habilidades como enxertador, ele próprio se encarregava de as reclamar, enumerando as vinhas, os pomares, as oliveiras, cerejeiras e até castanheiros a pegarem em carvalho e pereiras a pegar em marmeleiro o que dava «a pera marmela, que se se puser no arcaz da sementes e conserva quase o ano todo».
Eram poucas as jornas que fazia e não eram para todos, só quando lhe apetecia ou então precisava de comprar alguma roupa ou calçado. De resto, lá ficava na sua ermida.
A enxada só a usava para ele na sua hortita. Escusavam de o convidar para sementeiras, ceifas, malhas, acarrejos...,nada disso. Para os outros - só alguns -, para além das enxertias e das prospecções aquíferas, apenas alguns dias na colheita da azeitona, e era preciso que o tempo andasse bom, vindimas e podas. Trabalho para o Domingos era apenas o de navalha , tesoura e garrancho. Tudo o que tocasse a enxada, foice, mangoal, pá e picareta, ou outras tarefas mais pesadas, isso não, «que a espinha no deixava».
O próprio irmão, o Zé S. Marcos, pastor de vacas lá para os lados de Peraboa, quando vinha à aldeia só lhe chamava o calaceiro e calaceirão.: " Num quer mecha, o nosso Domingos... Opoi anda-me ali a comer só batatas cozidas com zêtonas, o lambão... Atão no podia dar uns dias mai e tinha dinheiro pra comprar uma pouca de carne ou um chicharro e umas sardinhas? É mesmo um calaceiro».
Uma vez, com os copos, o que era vulgar, começou a atentar o Domingos e este não foi de medidas: arruma-lhe um soco nas ventas e« é melhor num me tornares a aparecer na frente».
Não sei se a casa ainda está de pé, lá para os lados da quinta do Ramalhão... Devo ter sido das poucas pessoas que lá entrou. Ainda fez uns dias para mim à azeitona : não almoçava. Dizia que tinha comido um barranhão de feijão frade com uma tora de toucinho logo de manhã e só voltava a comer à noite. Levava sempre a sua cabaça com vinho do dele, que outro não bebia. Provei-o várias vezes e garanto-vos que era do melhor que se fazia entre os xendros. Era ele que fazia tudo sozinho.
No fim de contas não fazia mal a ninguém e vivia sossegado no seu mundo de eremita.
XXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGGGGRRRAANDDDDDDDEEEEEE

3 comentários:

Zé Morgas disse...

calaceiro.
conheço alguns aqui por estas bandas...

pratitamem disse...

Não é fgacil! Mas também não é deficil! É só o promenor, de dizer, PORRA èpá! Deixa lá lá a gente aguenta... Quantos são?

pratitamem disse...

Vir ao basagueda, pra mim faz parte e sempre fará, parte de um regresso, regressar a casa. É uma casa de que eu sempre gostei. É a minha casa. Por isso ás vezes fico triste, quando volto e a sinto triste. Sinto falta e vós sabeis de quem. Mas a vida é isto e nada maIS DO QUE ISTO.

Então não vale a pena esta conversa, pois só nos desespera! E o mundo agora somos nós, este resto de entulo que tentamos transformar em obras de arte. Esta amizade que nos une e nos transforma em cimento de artista, que junta tijolos partidos e refaz essa parede que é a nossa protegida amizade. É não só, mas também por isso, que aceitei o convite do meu amigo Karraio para o almoço de sabado. Viva a Liberdade!