quarta-feira, agosto 04, 2010

A NOSSA FALADURA - CLVI - ARTESA

Serão muitos poucos os xendros que se lembram deste termo. Os tempos passam e com eles a memória se esvai. Vão longe os tempos em que os animais conviviam paredes meias com os seus donos. A chamada loja servia de casa de banho para todos, principalmente para as mulheres que se viam e desejavam para ir aviar a vida. Deve dizer-se que o mais mal cheirososo de todos é aquele que traz consigo o nome, mas, em contrapartida é o mais saboroso e aquele que é aproveitado do rabo até à ponta do focinho, ou tromba, se preferirdes - o porco.
Era para ele que se guardavam todas as águas sujas e se formava a vianda... Os vizinhos que não tinham como criar tal bicheza, esses, guardavam também as sobras e despejavam no caldeiro dos que tinham, contando que, na altura da matança, lhes coubesse um naco de febra que aumentaria o paladar da couve tronchuda.

Conhecida é a história de o porco chamar burro ao burro, pois então:"és mesmo burro... o nome assenta-te na perfeição... Passas a vida a acarrejar comida para mim, que só como e durmo..." Pois é, espera pelos Santos ou pelo Natal e depois logo te conto... Contigo já são catorze os que aqui conheci e eu ainda cá ando. Enche bem o fato que quanto mais pesares mais te louvam, com a faca espetada na barbela... vai grunhindo, vai...". Anda sorve a artesa (=pia) bem sorvida.»

Como o porco também nós vivemos de ilusões. Iludimo-nos com a efemeridade de algo que nos correu bem e somos sempre heróis por culpa própria em todas as histórias em que somos intervenientes. Os outros são sempre mais burros que nós. Ou julgamos que são. Puro engano...

Passamos a vida a considerar qe as ilusões que nos impingem são as maiores verdades e nunca, ou raramente, pomos em questão a seriedade dessas verdades: só assim, à laia de amostra, já algum dia vos questionastes acerca de a alma existir ou não? Por que carga de água havemos de ser duais: corpo e alma? por que raio há-de esta ser imortal e aquele mortal? Não será mais razoável entender a imortalidade como a lembrança dos antepassados na memória dos vivos? Quero dizer, por exemplo, que os meus pais são para mim imortais porque enquanto eu viver os recordo e à vida que me proporcinaram, mais aos tempos que com eles convivi. Aqui é que está a imortalidade e não numa crença sem sentido racional, mas que se enraizou numa tradição cultural com tal força que se tornou lugar comum e portanto padrão cultural indiscutivel. Ilusão? Temos legitimidade para assim pensar.

Recordo aqui uma cena: foi apresentado um elefante a três cegos... A um deram-lhe para apalpar o rabo e ele disse,: o elefante é como uma corda... A outro possibilitaram-lhe que percorresse o dorso e: "o elefante é como uma parede..., ao terceiro colocaram-lhe as mãos numa pata do paquiderme e ele: "o elefante é como uma coluna,...

São assim as nossas convicções quando não as fazemos sofrer o efeito do crivo criterioso: julgamos que a nossa verdade é a única verdade...

Perdoe-se-me a ousadia da alegoria: sorvemos tudo o que nos vão pondo na artesa e como não saímos da pocilga da loja, até julgamos que não há outra comida diferente da que nos dão. Sorte a do burro que sempre arrisca uma vergastada, mas rói a folha viçosa da parreira, quando não mesmo se refastela com uva madura ou maçaroca de milho grada, iguarias que nunca passarão pela artesa do tó. É caso para parafrasear Luísa de Gusmão: "antes burro toda a vida do que porco por um ano".

Que conte dos anais da inteligência bacoreira resta aquela questão do porco à galinha:« sabes tu, animal de plumas, a diferença entre empenhado e imiscuído?» O bico respondeu: "Não". «Pois olha, retorquiu o quadrúpede roncador : "Para a semana casa-se a filha do nosso patrão... tu vais estar empenhada na boda com os teus ovos, mas continuas aqui... Pior estou eu que estou lá imiscuído ..."

Este queria não comer do que lhe punham na artesa... de pouco lhe adiantou... Assim nós, salvo seja...

XXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIGGGGGRRRRRRRAAAAAAAAAANNNNNNNNDDDDDEEEEE!

2 comentários:

Albertino Calamote disse...

Mais uma maravilha de prosa, à volta de um termo do nosso mais puro vernáculo, no seguimento, aliás, da já longa série, que desejaríamos, sinceramente, ver reunida em livro.
No Salvador do meu tempo nunca ouvi chamar assim à pia ou à gamela do marrancho. Já, porém, era comum dizer-se que a «cabrinha regressava à noite a casa tão artesada que se lhe ordenhavam quase dois litros de leite».
Se existisse o verbo artesar, dir-se-ia estarmos em presença do seu adjectivo verbal, na sua dupla forma de regular e de irregular...
Obrigado e os meus cumprimentos,
Albertino Calamote

António Serrano disse...

Um texto de se lhe tirar o chapéu, com Arte e Saber! Dá que pensar!!!
Uma parábola? Não sou capaz de o ler de outra maneira. Quem tiver olhos que veja, que tiver ouvidos que oiça. Quem tiver miolos que pense. Não conheci o termo artesa, mas o asno não o era tanto quanto lho chamavam. Até porque chamar burro a muito homem... é ofender o jumento...
Obrigado.
Abraço