Quando ouvi pela primeira vez A CARTA, com letra do João Monge, cantada pelos Resistência, lembrei-me de quantas vezes, também eu, ao fundo das escadas, sob as quais meu pai fizera uma tarimba para eu dormir, escrevi, aos Domingos, depois de missa e almoço, cartas muito semelhantes àquela.
O analfabetismo era um facto indesmentível, em elevada percentagem, o telefone era caro e lento e a carta era mais barata e os correios nem por isso eram muito demorados.
Poucos mais, na aldeia, cumpriam graciosamente com este mister de mandar e pedir novas dos entes queridos. Mais ainda dos famosos aerogramas que a guerra do ex ultramar também levou muitos xendros; até para Índia com o brigadeiro Leitão e Timor.
Um desses era o ti Emídio, cuja caligrafia , quando não estava borrachinho de todo, era um regalo; a outra era a ti Ermelinda, ali em frente da Lameira, mulher seca e espevitada, mexida que nem bicho da madeira, rija até mais não e de um asseio mais que sacro. O seu tinteiro de tinta, de cerâmica, branquinho, completo como só em museu voltei a ver, brilhava quase às escuras, tal a alvura com que sempre o mantinha. O aparo da caneta era lavadinho ao fim de cada desempenho e o pau que o sustinha era envolto num paninho, também ele branco de neve e repousavam todos, até próxima chamada, numa mesinha rectangular pintada de castanho e com uma toalha bordada, onde também, quando lhe calhava a vez, ficava o tríptico da Sagrada Família com a impecável lamparina de azeite sobre água, em gamela de vidro trabalhado, e sobre o qual flutuavam uma latinha triangular com as pontas espetadas em bóias de cortiça e a flor geminada, sempre acesa.
A casinha onde morava tinha uma loja que durante o Verão era bastante usada, primeiro porque vinham os cunhados de Lisboa e depois porque era muito mais fresca. Durante todo o ano, pelo menos uma vez por semana, lhe fazia uma barrela geral. Não raro, quando lhe ia a levar gás cheirava a lixívia purificante.
Foi numa dessas vezes em que lhe levei gás que ouvi pela primeira vez dois termos : estampilha (referindo-se a um selo de carta e não a uma bofetada que era o significado que eu lhe atribuía) e DESANDADOR.
Depois de ter retirado a bilha vazia e de ter submetido ao famoso click das garrafas Mobil, notei que cheirava a gás. Perguntei-lhe se não tinha já cheirado a gás, respondeu que sim, tirei o redutor e percorri o tubo: estava gretado e havia uma fuga. Comecei a tentar desenroscar a abraçadeira com uma faca, ela viu:"ESPERA AÍ QUE JÁ VOU POR UM DESANDADOR QUE É MELHOR DO QUE A FACA, NÃO TE CORTES!" E foi e veio com o desandador: uma chave de fendas. Ora aí está. A palavra não é onomatopaica, a função é: aquilo serve mesmo para fazer desandar. Registei e aqui vos fica.
Por esta altura do ano, sozinha ia colher a azeitona para a talha e, quando a colheita era muita vendia alguma. Ainda lhe comprei. Foi numa dessas vezes que eu, a brincar apostei com ela como num cesto eu era capaz de identificar dez azeitonas da mesma oliveira. Ela olhou para mim, e riu: és mai engraçado có teu pai". E eu:´« é verdade, pode acreditar» "pesa lá mas é a azeitona que eu não tenho vida para ouvir tontarias".
Acontece que eu, ao mudar a azeitona do cesto onde as tinha para uma caixa de plástico, vi um ramo de azeitonas para aí com umas dez...
«O Ti Ermelinda, vomecê não acredita que eu sou capaz de saber que dez azeitonas desta caixa são de certezinha da mesma oliveira, mas eu provo-lhe que é verdade» . Aí ela especou: "atão mostra lá" . Meti a mão agarrei o raminho e mostrei: «são ou não são da mesma oliveira?» " um raio ta palira, cachopo!" Meteu a mão ao bolso e: "Toma lá pela lição" Vinte e cinco tostões: uma fortuna. Fui direitinho ao Cavalheiro e papei um chocolate da Regina com uma Laranjina C.
Outros tempos, outras vivências, outros termos, outras marcas, outras histórias.
E a vós sempre vos digo que aquelas azeitonas só estavam seguras de um lado....
XXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIII GGGGGGGGGGGGGGRRRRRAAANNNNNDDDDDDDDDEE
2 comentários:
desandador, também é o nome dado ao utensílio fixa-machos,peça de aço, em forma de espiral, para abrir roscas.
Desandador! Tantas vezes que ouvi esta palavra na boca de minha Mãe, por causa da máquina de costura, sempre que andava às voltas com ela. Ainda ontem a vi, a máquina de costura. Lá na Aldeia.
Mais um belo texto, com pormenores a apartes preciosos, revelando aquele belo sentido de observação e uma memória prodigiosa. Para nosso proveito. E eu aproveito, deliciado.Obrigado.
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