sábado, dezembro 27, 2008

A NOSSA FALA - CXXII - ALDRA

Freud tratou deste fenómeno de forma superior: o contínuo desejo de retorno ao ventre materno, ou, dito de outro modo, o retorno às origens: a Regressão. Tal como Homero no canto X da Ilíada, narra de forma única o mito do eterno retorno: essa eternidade constante mas sempre renovada. Todos os anos há Inverno, mas ele é cada ano outro e é nesse fluir que a vida ao morrer se renova. Afinal tudo começa onde acaba. O que nasce traz já consigo a morte. Morrer é reviver e aí está o cerne da eternidade.
A ideia de procurar a origem das palavras só faz sentido se for no intuito de descortinarmos o significado original. É na fonte que se encontra a pureza dos significados. Aí não é preciso depurar nada. Está tudo virgem, intocado, puro, límpido e cristalino.
Foi assim no comentário do Karraio ao escarrafoucedo e assim vai ser aqui. Vou regressar às origens como sempre faço: Freud com a regressão e o ciclicismo homérico acompanham-me.
Em tempos, quando tinha mais vagar, entretinha-me a brincar com muitos aspectos da aprendizagem por que ia passando. Foi assim que profanei o singelo e inimitável poema de Augusto Gil - A Balada da Neve - a que chamei Balada da Pinga e que era mais ou menos assim: Bebem leve, levemente/Como quem bebe por mim/Será vinho ou aguardente/Ginja não é certamente/ E a cerveja não se bebe assim./Fui ver: a pinga caía/Tinta e leve, tinta e fria/... e por aí adiante.
Foi também assim que me deu para brincar com a convergência e a divergência, a propósito da entrada das palavras na língua portuguesa. Em regra, diz-se, as palavras ou entram por via erudita ou por via popular. Assim: solitarium deu em português solitário, por via erudita e solteiro, por via popular. Tudo bem, mas não tem piada. A questão agora prendia-se com a palavra NAU, cujo étimo latino é NAVEM (acusativo do singular de navis-is). Então, saio-me assim : NAVE entrou por via espacial e NAU entrou por via marítima.
Vem isto a propósito da origem da palavra que hoje vos trago aqui. Esta veio de Cometa.
Zé Cometa era ajudante de carga no antigo serviço de correspondência das centrais de camionagem com a C.P., que por acaso era lá em casa. Cometa era um fraca chichas, homem aí de 1,60 de altura, esquelético, mas verguio e teso como vi poucos. Brincava com as sacas cheias de batatas e, às vezes, eu e ele punhamo-nos a ver a que distância conseguíamos lançar uma saca de 50 Kg da loja para a camioneta encostada à porta. A loja era curta. Não havia pai. Muitos lá foram mas só eu e Cometa ou Pereira (o motorista),outro bom amigo desses tempos fazíamos tal proeza. Por tudo e por nada, Cometa gritava ALDRA! a moda pegou e a xendrice agarrou a palavra e fê-la sua. Ainda hoje se ouve por lá. Veio mesmo de Cometa
A vedeta que hoje vos quero trazer, porém, é o Miguelito: figura mais que famosa, fogueteiro das festas com camião, sempre pronto para ajudar em funerais, procissões e outros eventos, mordomo quase perene do sr. S. Bartolomeu, leiloeiro, pedreiro, mineiro, tosquiador, lavrador, limpador, cortador de lenha, valdevinos e amigo de fazer rir o pessoal. Lembro-me bem de, quando ele trabalhava para o Alferes Rei, ser o grande animador dos Carnavais da Aldeia. Só por uma vez foi substituído e um dia logo vos conto como foi. Estou a vê-lo, qual Napoleão, montado numa mula, de espada brandida, dando notícia dos namoros escondidos que por lá se passavam. Corria a Aldeia toda como um arauto, anunciando o que se queria ocultar. Era tchapado o Miguelito.
Casado com Lurdes Lúcia, de vez em quando abalava-lhe sem dar cavaco e ia a ver delas. Chegou a ir para França sem lhe dizer nada.
Certo dia, depois de regressar de uma dessas suas viagens mirabolantes, prometeu à Lurdes que só vinha ao povo a beber um café e voltava logo para casa. A promessa fez ele, mas o cumprimento foi como os do governo. Esqueceu-se.
Lurdes, cansada de esperar, deitou-se. Miguelito foi para casa já madrugada dentro, meteu-se à sucapa na cama, Lurdes fingiu que não deu conta.
Na manhã seguinte: «oh, meu aldrabão, a que horas te deitaste onte, à noite? E o Miguel:" às dez; demorei-me um pouco porque incontrei o Changoto e estivemos a escrever uma carta prá França, por mor da Segurança Social. Se num acreditas, pergunta-lhe".
Miguelito tinha ideia de me preparar para a inculca mas Lurdes veio ao sabão, à loja:« Já viste: o mê Miiguel disse que entrou às dez em casa e que esteve contigo a escrever uma carta prá França, o aldrabão...Eu bem ouvi o relógio a bater só uma hora» " Ó ti Lurdes, atão tamém queria que o relógio batesse o zero" « És igual a ele, ALDRA!
Para todos vós os desejos de um Ano Novo com tudo o que mais desejardes; convém não esquecer que o último minuto de dois mil e oito tem mais um segundo, para acertar o movimento da terra com a hora atómica. Ela vai-se atrasando. é preciso dar-lhe mais tempo.
Não esquecer que o relógio não bate as zero horas...
XIIIIIIIIIIIIIIII EEEEEEEEEEEEEENNNNNNNOOOOOOORRRRRRRRRRRRRRMMMMMMMMEEEEEEEEE

10 comentários:

Anónimo disse...

BOA...Boa!

Anónimo disse...

Oh Vitor!
Tens muita piada. Só exajeras, em minha opinião, nos considerandos. Aliás, por via disso, eu só leio as partes finais destas tuas croniquetas.
Um abraço e votos de Boas Festas.

António Serrano disse...

Já cá canta, lido de ponta a ponta, com o prazer de sempre,
incluindo, está bem de ver, os considerandos. Isto sem "encenação" não tinha piada... O Sócrates, que não o grego e sem ofensa, sabe disso...
O autor é um Mestre da Língua Portuguesa, que a usa de forma notável e, penso eu, não deve ficar-se pelo mero contador de histórias, ainda que bem divertidas. Abraço amigo com o meu agradecimento e votos de ano novo satisfatório...

Anónimo disse...

Concordo com o António Serrano, tudo o que lá está faz lá falta. Não cortes nada é por aí que passa a beleza destes textos!!!

Boas Festas a todos!!

Anónimo disse...

Não era o P.e António Vieira que dizia: " Não tive tempo para escrever pouco"?
Mais um abraço.

Anónimo disse...

Grande Changoto!
Mai um segundo? ALDRA!

Anónimo disse...

Qual cortar qual quê!... Não corta nada!... Ai dele...

Anónimo disse...

Um bom Ano Novo para o changoto e companhia.
Não é aldra, é mesmo do coração.
Um abraço.

Anónimo disse...

Ao Karraio e ao Changoto, um bom ano de 2009 (já que não podemos passar de imediato a 2010, para ultrapassar as prometidas dificuldades de 2009).
Aqueles que não atenderem aos considerandos perdem uma boa oportunidade de pensar...
E toda a gente sabe como os preliminares são importantes!

Anónimo disse...

Obrigado pelas palavras mui sabias de outros tempos, nestes de esquecimento de tudo o resto, o que mais interessa. Bom Ano de
2009!


Xeltox, um cuco admirador.