Freud tratou deste fenómeno de forma superior: o contínuo desejo de retorno ao ventre materno, ou, dito de outro modo, o retorno às origens: a Regressão. Tal como Homero no canto X da Ilíada, narra de forma única o mito do eterno retorno: essa eternidade constante mas sempre renovada. Todos os anos há Inverno, mas ele é cada ano outro e é nesse fluir que a vida ao morrer se renova. Afinal tudo começa onde acaba. O que nasce traz já consigo a morte. Morrer é reviver e aí está o cerne da eternidade.
A ideia de procurar a origem das palavras só faz sentido se for no intuito de descortinarmos o significado original. É na fonte que se encontra a pureza dos significados. Aí não é preciso depurar nada. Está tudo virgem, intocado, puro, límpido e cristalino.
Foi assim no comentário do Karraio ao escarrafoucedo e assim vai ser aqui. Vou regressar às origens como sempre faço: Freud com a regressão e o ciclicismo homérico acompanham-me.
Em tempos, quando tinha mais vagar, entretinha-me a brincar com muitos aspectos da aprendizagem por que ia passando. Foi assim que profanei o singelo e inimitável poema de Augusto Gil - A Balada da Neve - a que chamei Balada da Pinga e que era mais ou menos assim: Bebem leve, levemente/Como quem bebe por mim/Será vinho ou aguardente/Ginja não é certamente/ E a cerveja não se bebe assim./Fui ver: a pinga caía/Tinta e leve, tinta e fria/... e por aí adiante.
Foi também assim que me deu para brincar com a convergência e a divergência, a propósito da entrada das palavras na língua portuguesa. Em regra, diz-se, as palavras ou entram por via erudita ou por via popular. Assim: solitarium deu em português solitário, por via erudita e solteiro, por via popular. Tudo bem, mas não tem piada. A questão agora prendia-se com a palavra NAU, cujo étimo latino é NAVEM (acusativo do singular de navis-is). Então, saio-me assim : NAVE entrou por via espacial e NAU entrou por via marítima.
Vem isto a propósito da origem da palavra que hoje vos trago aqui. Esta veio de Cometa.
Zé Cometa era ajudante de carga no antigo serviço de correspondência das centrais de camionagem com a C.P., que por acaso era lá em casa. Cometa era um fraca chichas, homem aí de 1,60 de altura, esquelético, mas verguio e teso como vi poucos. Brincava com as sacas cheias de batatas e, às vezes, eu e ele punhamo-nos a ver a que distância conseguíamos lançar uma saca de 50 Kg da loja para a camioneta encostada à porta. A loja era curta. Não havia pai. Muitos lá foram mas só eu e Cometa ou Pereira (o motorista),outro bom amigo desses tempos fazíamos tal proeza. Por tudo e por nada, Cometa gritava ALDRA! a moda pegou e a xendrice agarrou a palavra e fê-la sua. Ainda hoje se ouve por lá. Veio mesmo de Cometa
A vedeta que hoje vos quero trazer, porém, é o Miguelito: figura mais que famosa, fogueteiro das festas com camião, sempre pronto para ajudar em funerais, procissões e outros eventos, mordomo quase perene do sr. S. Bartolomeu, leiloeiro, pedreiro, mineiro, tosquiador, lavrador, limpador, cortador de lenha, valdevinos e amigo de fazer rir o pessoal. Lembro-me bem de, quando ele trabalhava para o Alferes Rei, ser o grande animador dos Carnavais da Aldeia. Só por uma vez foi substituído e um dia logo vos conto como foi. Estou a vê-lo, qual Napoleão, montado numa mula, de espada brandida, dando notícia dos namoros escondidos que por lá se passavam. Corria a Aldeia toda como um arauto, anunciando o que se queria ocultar. Era tchapado o Miguelito.
Casado com Lurdes Lúcia, de vez em quando abalava-lhe sem dar cavaco e ia a ver delas. Chegou a ir para França sem lhe dizer nada.
Certo dia, depois de regressar de uma dessas suas viagens mirabolantes, prometeu à Lurdes que só vinha ao povo a beber um café e voltava logo para casa. A promessa fez ele, mas o cumprimento foi como os do governo. Esqueceu-se.
Lurdes, cansada de esperar, deitou-se. Miguelito foi para casa já madrugada dentro, meteu-se à sucapa na cama, Lurdes fingiu que não deu conta.
Na manhã seguinte: «oh, meu aldrabão, a que horas te deitaste onte, à noite? E o Miguel:" às dez; demorei-me um pouco porque incontrei o Changoto e estivemos a escrever uma carta prá França, por mor da Segurança Social. Se num acreditas, pergunta-lhe".
Miguelito tinha ideia de me preparar para a inculca mas Lurdes veio ao sabão, à loja:« Já viste: o mê Miiguel disse que entrou às dez em casa e que esteve contigo a escrever uma carta prá França, o aldrabão...Eu bem ouvi o relógio a bater só uma hora» " Ó ti Lurdes, atão tamém queria que o relógio batesse o zero" « És igual a ele, ALDRA!
Para todos vós os desejos de um Ano Novo com tudo o que mais desejardes; convém não esquecer que o último minuto de dois mil e oito tem mais um segundo, para acertar o movimento da terra com a hora atómica. Ela vai-se atrasando. é preciso dar-lhe mais tempo.
Não esquecer que o relógio não bate as zero horas...
XIIIIIIIIIIIIIIII EEEEEEEEEEEEEENNNNNNNOOOOOOORRRRRRRRRRRRRRMMMMMMMMEEEEEEEEE
10 comentários:
BOA...Boa!
Oh Vitor!
Tens muita piada. Só exajeras, em minha opinião, nos considerandos. Aliás, por via disso, eu só leio as partes finais destas tuas croniquetas.
Um abraço e votos de Boas Festas.
Já cá canta, lido de ponta a ponta, com o prazer de sempre,
incluindo, está bem de ver, os considerandos. Isto sem "encenação" não tinha piada... O Sócrates, que não o grego e sem ofensa, sabe disso...
O autor é um Mestre da Língua Portuguesa, que a usa de forma notável e, penso eu, não deve ficar-se pelo mero contador de histórias, ainda que bem divertidas. Abraço amigo com o meu agradecimento e votos de ano novo satisfatório...
Concordo com o António Serrano, tudo o que lá está faz lá falta. Não cortes nada é por aí que passa a beleza destes textos!!!
Boas Festas a todos!!
Não era o P.e António Vieira que dizia: " Não tive tempo para escrever pouco"?
Mais um abraço.
Grande Changoto!
Mai um segundo? ALDRA!
Qual cortar qual quê!... Não corta nada!... Ai dele...
Um bom Ano Novo para o changoto e companhia.
Não é aldra, é mesmo do coração.
Um abraço.
Ao Karraio e ao Changoto, um bom ano de 2009 (já que não podemos passar de imediato a 2010, para ultrapassar as prometidas dificuldades de 2009).
Aqueles que não atenderem aos considerandos perdem uma boa oportunidade de pensar...
E toda a gente sabe como os preliminares são importantes!
Obrigado pelas palavras mui sabias de outros tempos, nestes de esquecimento de tudo o resto, o que mais interessa. Bom Ano de
2009!
Xeltox, um cuco admirador.
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