quarta-feira, dezembro 17, 2008

A NOSSA FALA - CXXI - ESCARRAFO(U)CEDO

A vaidosice sempre foi característica dos seres vivos sexuados, quer machos quer fêmeas. Se bem que a Apostólica Romana a tenha colocado no rol da Preguiça, da Ira, da Inveja, da Gula, da Luxúria, da Avareza, a Vaidade ou Orgulho, mesmo na Idade Média e apesar das santas atrocidades cometidas pela Santa Inquisição, nem mesmo assim ela alguma vez se reduziu. Ao contrário, cada vez mais fermentou e no mundo de hoje a pedantice grassa por tudo quanto é sítio.
Lembro-me, lembro-me bem, de, por alturas da catequese para o Crisma, altura em que o bispo diocesano saía do seu opulento Paço, onde até se podia a gente pentear ao espelho dos azulejos, Clara Violas, Tonha Freira, Menina Irene, Menina Palufa, Joãozinho Bargão, ensinavam e repetidamente insistiam no significado deste Sacramento: Que seríamos soldados de N.S.J.C..
Chegado o dia, no lado Norte, a todo o cumprimento da Igreja, estenderam-se as mesas e as iguarias foram espalhadas por cima de toalhas alvas: bolinhos de toda a qualidade - borrachões, esquecidos, bolos de leite, de noz, de amêndoa, tartes e tortas, de buraco e fechados, pão de ló, e mais cascuréis (=coscorões), biscoitos, troncos, pratinhos com chouriço, presunto, queijo, azeitonas, galos no forno, coelhos, e até um perú... e sumos de capilé, groselha e limão, grades de pirolitos, gasosa castraleuca e prazeres, laranjada e muito leite de cabra e de vaca em cântaros de lata, tapados por guardanapo bordado à mão - Não havia A:S:A:E:.
Bebi leite com cacau naquele dia pela primeira vez. Ainda hoje bebo. Gosto muito de cacau com leite.
Era um regalo de ver: tudo muito bem arreado, assim mesmo como mandavam os trinques: avôs de surrobeco de jaqueta ao lado, relógio de bolso, preso por corrente de prata segura com nó cego na casa do botão do colete, avós com chita bem passadinha coma atilho na cintura, sandalinha de cabedal a reluzir, saiote a meia perna e algumas de avental "por mor de alguma nódoa", as mães, mais novas, já com saia de merca em feira e, algumas mesmo, com vestido feito pela ti Glória em fazenda garrida comprada na Troa, Tó ou João Robalo, e blusa ou casaquinho a "conduzir" =(condizer) com a farpela, todas (avós e mães) de lenço na cabeça, algumas já de preto, os pais, esses de botim cardado, fato feito por medida no Tó Pedro, chapéu de aba curta.
Chquim Camião e Miguelito estavam ao alto da estrada, à espera que o séquito episcopal lhes estivesse ao alcance da vista e , de repente, PUM,PUM;PUM,pum,pum, tau,pum: o bispo estava a chegar.
Só nessa altura é que os dois manos Chamiços, João Feijão, Domingos Abade e outros foram molhar as fúcias no caldeiro da água, lavar a cabeça com sabão de borra de azeite e mistura de petróleo, vestir-se à pressa e chegar ao adro esbaforidos, mas a horas de entrarem na fila comandada pelos respectivos professores e ao lado dos padrinhos competentes.
O cabelo dos Chamiços alumiava. Naquele dia de S. Bartolomeu, brilhante de Sol, a mistura do petróleo da lavadela com o suor da corrida deixou a cabeça dos dois irmãos a reluzir que nem pirilampos nas guardas da ponte em noite húmida.
Já de si aquele cabelo era desalinhado e depois cortado com a tesoura da costura com a ajuda de uma malga para ficar arredondado, dava aos Chamiços, de face encarnada, um aspecto escarrafoucedo. Menina Irene vê aqueles preparos e foi-se a eles, só o que o cheiro do petróleo era ainda intenso e mexer naquele cabelo era impensável para uma mão de alvura mais que neve. Como resolver o problema: sobrou para mim, está claro. Pediu-me para acender o fogão que havia de servir para amornar o leite ao fim da cerimónia, aqueci água, ela lavou a cabeça aos Chamiços com sabonete e saio-me: «O Mné furdas trouxe-me um perfume de Espanha, quer que o vá buscar?»Era Tabu, cheirava a uma légua, mas Menina Irene antes queria Tabu do que Petróleo. Untou a cabeça dos Chamiços que continuaram escarrafoucedos, mas cheirosos. Empestaram a igreja toda. Os velhos cá atrás comentavam:«quem será o do garoto que tomou banho em Tabu? Raios o afundem...»
D. Policarpo quis saber da nossa competência: " Quem me diz o que significa o Crisma? "Ao fim de algum tempo lá levantei a mão e a Clara Violas, catequista, ficou assim a modos com medo e "Vê lá se sabes?" "Diz lá meu menino! "e vou eu: «O Santo Sacramento do Crisma significa que agora nós pertencemos ao Exército da Santa Madre Igreja Católica Romana e somos soldados de Nosso Senhor Jesus Cristo! » " Muito bem! E como se chama aquele soldado que em vez de obedecer às ordens do comandante para avançar e atacar, vira as costas e foge?" Prontamente digo :« é um cagão , senhor bispo». Risada geral em toda a igreja e discussão pegada; Zé Borges acalma as hostes no coro:" o miúdo tem razão porque um cagão é um cagarela mas também pode ser um vaidoseco".
D. Policarpo lá me crismou, levei a bofetada do meu padrinho e fui-me ao cacau e ao presunto, ao queijo e aos cascuréis. Mas não fiquei ao lado do Chamiço de cabelo escarrafoucedo e cheio de TABU
XI GRANDE

6 comentários:

Anónimo disse...

Mais um para a galeria, das medalhas de ouro!
És tchapado, não á pai pra rita...
Mais uma vez, parabens pela escrita e um abraço!

Anónimo disse...

Ao ler as coisas que escreves, muitas vezes, fica-se baralhado!!! Como sabes estas coisas todas? Será que tens uns oitenta anos de idade? Quem ja se lembra do petróleo? Agora é o gel!!!!É que estas histórias não parecem inventadas,ou então, são contadas com tanto realismo que parecem vividas... Espero que as estejas a registar em papel...

José Teodoro Prata disse...

Changoto:
Ri-me até às lágrimas com aquela do cagão.
Mais um hino à língua portuguesa e ao nosso povo.
Há dois anos que não perco uma, mas só agora arrisco um comentário.
Nabices de alguém, mais afoito à enxada do que ao computador.
E esta: Há dias, durante a refeição, comentei que passara por alguém e lhe dera a salvação. A minha filha ficou muito intigrada por eu ter salvo uma pessoa só por passar por ela. Explica lá aos mais novos o que é dar a salvação, se em Aldeia do Bispo tiver o mesmo significado que em S. Vicente da Beira.
Um abraço e até breve.

Anónimo disse...

Mais uma bela história.E da maneira como é contada até parece que estamos lá dentro da Igreja a presenciar a cena toda e depois rebolramos no chão a rir.Está demais!Digna de uma cena daqueles filmes portugueses antigos, do tempo do António Silva & Cia.
Um abraço.
A.Leitão

António Serrano disse...

Descontando um pequeno lapso doutrinal - a vaidosice não pertence aos "7 Capitais", mas fora eu a mandar e enfiava-o já lá que há p'raí muita gente com "crédito mal parado" por culpa dela, da vaidosice e do cartão de crédito à mão... - este texto é mais uma jóia deliciosa, escrito por mente brilhante.Ficámos todos mais ricos e bem dispostos. Parabéns!!! Obrigado!!!

karraio disse...

Dei comigo a encontrar algumas parecenças entre a palavra inglesa para "mal encarado" e este nosso escarrafoucedo. Vejamos:
SCARy FACE e eSCARraFouCEdo. Pois! e agora? explicação?
Foi um baságuedo que trouxe consigo o conceito da velha albion e aqui o introduziu, generalizando-se, ou, foram os súbditos de her magesty the queen que cá vieram buscá-lo. Ou, nenhuma das hipóteses, trata-se apenas de uma coincidência. Para já, concluo: yo no creo en coincidências pero que las hay hay.