segunda-feira, março 03, 2014

A NOSSA FALADURA - CCXXI - CHARRINCA

Hoje deu-me para aqui. Quero a vossa cabeça a aquecer.  A ver se não charrinca quando for preciso pensar na vida a sério. E já faltou mais! Há que preparar. Senão depois, enferrujados como estamos charrincamos por todo o lado e não damos carreira direita. A ver se gostais desta prosa:
Vivemos num tempo em que quase não há tempo para ter tempo. Apesar das velocidades que a tecnologia nos possibilita a verdade é que passamos grande parte da nossa vida a protestar que não temos tempo.
Por isso vivemos num tempo sem tempo. A característica mor deste tempo é a efemeridade. Tudo é efémero e descartável: pessoas, situações, objectos, … Já nada é como era e a própria memória, essa nobre faculdade humana, está hoje tão empobrecida e esquecida que já não é estimulada.
Trocamos a memorização e a recordação pelo registo em artefactos.
O futuro será de Alzheimer a não ser que se arrepie caminho e voltemos a accionar a nossa faculdade de evocar e reconhecer.
Até parece – perdoe-se a delação - que  o novo acordo ortográfico também alinha por este diapasão: tiram tanta letra que desconfiguram o português e a nossa língua deixa de ser novilatina para ser novimulticultural. Perde a sua identidade e a sua vernaculidade. Penso que isto é também consequência deste tempo sem tempo: quantos menos letras escrevermos, mais depressa escrevemos e assim ganhamos o tempo que não temos e nos falta. Triste solução.
Por isso, aparecer neste tempo quem recuse o fast thinking, com a mesma veemência que eu recuso o fast food, alguém que parou para pensar, que não se afligiu em parecer fora de tempo, em ser desalinhado face à grande maioria, que come em pé e não saboreia calmamente a refeição, é tão estranho que até destoa.
É mesmo necessário parar para pensar! Exercitar aquela que é a dimensão mais elevada do ser humano: a sua capacidade de criar, de romper com o estabelecido, de desobedecer ao status quo, de subverter o dogma, de propor ousadias e de nos convidar a nós próprios também a exercitar o nosso pensamento.
O tempo hoje nem é local nem global: é glocal, e o facto de as coisas que não sabemos serem muitas mais do que as que sabemos, não nos deve preocupar sobremaneira. Afinal estamos, hoje por hoje, sempre mais perto do erro, da falibilidade, do que da segurança e da estabilidade. Já nada está certo a não ser a insegurança, ela mesma. Mais que nunca o velho efésio tinha razão: panta rei. Tudo flui, tudo passa naquela fugacidade do instante eterno. Estamos muito num agora e pouco num aqui.
A indefinição do espaço e a ausência de fronteira obriga-nos a um nova concepção do limite. Afinal vivemos no limite sem contornos, no ilimitado.
É assim que se entende que cada vez que dou uma volta e volto ao ponto de origem, já não volto como saí. O não-eu fichteano desnorteia o eu e a inconsciência sobrepõe-se ao consciente, nesta efemeridade permanente, em que o que é, é o que não é. 
O que é, é apenas o que é nosso:  a subjectividade de cada momento é que revitaliza a objectividade do que acontece.
Estamos longe das coordenadas cartesianas em que tudo tinha um quadrante e o ponto era entendível nesse espaço; «Já nada sói como soía», pregava, faz tempo, o nosso zarolho.
A educação, ela própria, esse motor que impulsiona o progresso, vive o dilema de ficar para trás a empurrar para a frente. Esta nova realidade surge tão relampejante que ofusca o simples observador e, imperioso é que tenhamos a necessária competência para releituras desta realidade que nos ultrapassa e à educação.
O passo é maior que a perna.
Já nada é paradigmático, único, fechado, sistémico. Temos que aprender a aprender e limparmos as nossas leituras, pejadas de viciações, que já não se enquadram nas padronizações em que enraizamos o nosso saber.
O mundo, hoje por hoje, é da mobilidade, da alterabilidade, do movediço, do polémico. Não mais uma razão arquitectónica , alicerçada em fundamentos tidos como inabaláveis.
Os dogmas são rebatidos e já nada é sagrado, tudo é, a cada momento, profanado.
É aqui que entra, impante, a necessidade de uma ética mínima.
Na nova educação não pode haver pretensões ao “no meu tempo é que era”.
Os valores mais tradicionais entraram também em decadência e é indispensável uma nova escatologia axiológica.
Estamos numa nova dimensão da ética: não já a fixa deontologia do chinês de Konigsberg, menos ainda o oportunismo utilitarista de Mill, que não dava carreira direita no que à felicidade dizia respeito, mas numa ética de outra dimensão, virada para os tempos hodiernos, com fulcro no homem e no seu tempo, numa idiossincrasia com o ambiente e percorrendo todos os campos da sua actividade, acentuando o enfoque numa educação ética, que proponha uma educação para os valores e para a cidadania, pois só esta, enfim, possibilitará a almejada felicidade ao homem, perante as mudanças produzidas pela sociedade actual.
Tempos outros foram aqueles que proporcionaram as éticas do equilíbrio, da ponderação, da temperança, da aurea mediocritas… Os de hoje têm inimigos muitos, desde o egoísmo, muitas vezes camuflado num altruísmo reversível, em que o gene egoísta nunca desaparece, ao relativismo cultural que, hipocritamente, diz que cada cultura deve ser respeitada nos seus valores, mas quer sempre impor os seus, renegando-se a si próprio e aos outros, caindo num individualismo que pode levar a uma total perversão do que deve ser a compostura humana e humanitária.
Vamos então situar o homem perante uma charneira onde nada está fechado e tudo está em aberto.
A contemporaneidade é acidental relativamente ao tempo, mas é essencial para a assumpção da condição humana no tempo.
A necessidade educativa e/ou ética parte das exigências de compromisso do sujeito responsável e activo em estar presente no presente, que, no fundo, é um tempo caracterizado pelas ideias e crises, pela globalização, pela informatização, pela ruptura e avanços das tecnologias nas diferentes áreas do saber.
Num tempo em que o homem tem dificuldade em segurar o presente a dimensão ética adquire foros de necessidade premente, não com pressupostos valorativos impostos, mas antes, como propostas que sejam vivenciais e atractivas, visando a obtenção da felicidade que se busca.
A epistemologia desvia-se para a ética e os cientistas quase emergem como novos deuses e o saber arrisca-se a arrastar-se para uma crise axiológica que mais não é do que uma crise antropológica.
A questão agrava-se se confirmarmos que vivemos numa sociedade de informação, quando a questão mais premente é se essa informação é boa e, mais ainda se os cidadãos estão e são bem informados.
É que, tanta informação torna-se em desinformação e o que se transmite pode resvalar para os não valores e o homem acaba por desaparecer no meio da massa, no interior do sistema.
É por isso que mais ressalta e emerge a importância do papel da escola para que o homem não desapareça.
Entramos numa nova era que abriu os campos do desespero como diz Toffler e não há alternativa senão que
“ é obrigatório falar de uma ética mínima, entendendo por ética o espaço de procura e articulação de formas válidas de convivências, e, por mínima, o conjunto de valores comuns a todos os homens e culturas.”
Volvamos ao começo para que o norte não nos fuja! Neste tempo de mudanças contínuas, não cabe já falar de uma profissão mas de profissões e a ética das profissões acarreta a responsabilidade de arcar com a missão de ser o pontífice entre a tradição do constante com a alterabilidade do contemporâneo, satisfazendo as cada vez mais sucessivas especialidades formativas que a sociedade exige.
Basta ver que, paradoxalmente, a sociedade da comunicação convida a que se trabalhe em casa, que cada um “case” com a sua máquina, que produza no isolamento.
Singular paradoxo!
Morin tem vindo a recuperar para a ribalta as ciências humanas e sociais e, mais radicalmente ainda, Bourdieu assinala o decisivo papel do homem, já que é dele que tudo parte e a ele tudo retorna – o inultrapassável mito do eterno retorno, -  mas agora numa dialéctica fermentada num campus de forças, que acrescenta sempre novidades, como Husserl exigia na alteração da posição radical.
Talvez não seja asneira colocarmo-nos off-side e metermos muito do que temos crido até agora entre parêntesis, para que lixiviados de crenças que reputamos de bem fundamentadas, não nos confrontemos com a simples constatação de Gettier: afinal o relógio do tempo que sempre bateu as horas certas e me servia de fuso para as minhas tarefas, naquele dia, avariou e eu cheguei tarde ao trabalho…
Cartesius queria a ordem, mas, ao que parece, mais vale a entropia. A boa ordem, não é a ordem do racionalismo, mas a do humanismo e esta nunca é igual e, mais importante que seguir um método que não se renova, melhor será uma aparente ausência de metodismo, jogando numa abertura a novidades que permitam transformar o método em plano e assim admitir, e até aconselhar, alterações ao momento, enfrentando as realidades com novas epistemologias e novas diálises.
Os jovens de hoje gravitam na era da tecla, do click, do instante, do eficaz, do empréstimo, do importa e do exporta, do actualizar e reformular, do formatar, não estão muito para se encharcar com informação despicienda, desde os sistemas das serras até às linhas de comboio e afluentes das duas margens dos rios.
Eles sabem -  e quanto eles sabem que os outros não sabem! -, eles sabem tirar do caos a ordem de que necessitam. Não é preciso forçar! Está-lhes na massa do sangue: a inteligência racional casada com a inteligência artificial dá campo vasto de manobra para as novas ciências cognitivas.
Não queiram, pois os velhos do Restelo querer andar para a frente a olhar para o retrovisor.

4 comentários:

Manuel Borges disse...

Hé lá lá esta crónica excedeu as espectativas, será que o lanche foi acompanhado com chá/infusão essa bebida fervente e algumas folhas verdes em vez do tradicional copo de tinto ou mesmo branco ? deu para isto em vez da crónica habitual das lembranças da juventude deu para olhar para a desgraçada sociedade actual. Fizeste-me lembrar aquela máxima da minha adolescência: se o vinho te prejudica os estudos larga os estudos. Abraço.

Zé Rainho disse...

Grande texto - não no sentido do tamanho mas no sentido do conteúdo - maravilhosamente escrito sem abdicar da utilização das letras todas.
Fantástica reflexão sobre a ética, sobre valores, sobre humanismo, filosófico e antropológico do mais alto gabarito.
Este blogue foi-me indicado por amigo há poucos dias. É a segunda vez que o visito. Não conheço o escriba mas nem por isso deixo de o admirar.
Merece reflexão atempada e aturada. Com tempo, mesmo sem tempo.
Parabéns. Voltarei sempre.

Zé Morgas disse...

Changoto ao mais alto nível.

pratitamem disse...

Changoto, é ou não é faCIL, VE-LO ao maís alto nivel! Ele é na minha modesta opinião, o nivel. Pelo menos o meu. E tenho dadó-me bem! Isto de saber ler é muito giro. Mas ler +e mais defícil, como diz o meu colega de Portalegre! Assim, estou a ouvir, i still loving you! Que fui ver com a minha mulher ao agora, "meo arena", sendo portanto assim, que ler Changoto, é na verdade muito ? Como é que eu saio desta!? Facil ou Díficel.... Pra mim é na verdade muito saboroso! Sem sal a maís ou sal a menos, mas no ponto. Como eu gosto! Às vezes irrita-me, outras, deixa-me de rastos...mas ler o Basagueda é este privilégio de quem pode, mesmo que isto pareça de Esquerda!