Ritinha Penedo era mesmo o que se podia chamar de redolha: pequenina mas bem feita com tudo no sítio, proporcional ao tamanho. Podia dizer-se mesmo que era bastante jeitosa e que não era pela estatura que não despertava atenção. A única coisa que tinha desmesurada era a língua. Esfarrapava em tudo e em todos e ai de quem lhe caísse na análise. Virava tudo de pantanas e, por isso, poucos eram os que privavam com ela. Não admira que tenha ficado para tia. Eu, como tinha que periodicamente ir abastecer a casa de gás, tinha que tirar parte da manhã para ouvir umas lavagens de roupa suja a propósito de situações e pessoas da aldeia xêndrica. Era a vida !
Tal como um presidente da República conhecido, nunca tinha dúvidas e sabia sempre tudo. Mais ainda: conhecia todas as causas. Não afirmava nada sem fundamentar numa causa. Nem que fosse a mais estapafúrdia, a convicção com asseverava era tal que fazia parecer verdade o inverosímil. Quando não havia causas na Terra, subia ao céu e invocava divindades em seu auxílio. Era em vão que alguém a desdissesse.A consequência era que caía nas suas más graças e não tardava que a espezinhasse com a sua língua viperina. Da mesma forma tecia os mais alto louvores para os que lhe diziam AMEN e anuíam a tudo o que dissesse. A forma que eu tinha de me libertar daqueles massacres era estar sempre de acordo. Não valia a pena discutir com espíritos herméticos.
Para rodolha não estava nada mal: agigantava-se .
Lembrei-me desta personagem para vos convidar a uma pequena ruminação mental sobre o conceito de causa.
Por exemplo: para os clássicos da antiguidade os céus eram incorruptíveis porque eram perfeitos e o que está perfeito não pode alterar-se. Para os medievos o decisivo era martirizar o corpo nesta vida terrena por causa de merecermos a salvação; para os modernos a causa obrigava a que o efeito se seguisse sempre da mesma maneira desde que se mantivessem as circunstâncias. O método experimental, base de todo o pensar positivista defendia mesmo que só tinha direito de alforria em ciência aquilo que pudesse ser demonstrado nos factos. Ora como se sabe as demonstrações não têm argumentação ou seja, não se discutem. As coisas são assim porque são e não podem ser de outra maneira, porque é assim que se verifica na experimentação factual. O problema começa a complicar-se quando o alcance do mundo científico se estende para lá dos confins dos laboratórios experimentais. Aí, a experimentação e a verificação factual não são possíveis, mas a ciência, no seu afã de mais descobrir, não pode parar no que já domina e arrisca para campos ignotos. Aí os factos e as coisas já não são as nossas coisas. Podemos dizer mesmo que são coisas não-coisas. Isto é, há muitos objectos de ciência que já não cabem na concepção tradicional de objecto. Habituamo-nos a aceitar que tudo o que existe tem que existir num tempo e ocupar um espaço. Mas não é bem assim: no mundo do infinitamente pequeno ou do infinitamente grande (no microcosmos ou no macrocosmos) o que alimenta a ciência já não são as causas, porque os objectos que são alvo de estudo já não se enquadram nas velhas concepões. O determinismo e a segurança cedem lugar ao indeterminismo e à incerteza. A realidade escapa-se-nos e a tridimensionalidade é insuficiente para configurar estes novos objectos. Por isso, há quem lhes chame sobre-objectos. Os fenómenos deixam de poder ser entendidos nos quadros de uma ciência normal e temos que buscar uma ciência extraordinária. Vemo-nos na contingência de ter que mudar de paradigma explicativo embora isso nos custe. Era isto que a nossa redolha nunca fazia: só havia uma bitola- a dela -.
Voltemos ainda às nossas deambulações: as tais coisas não coisas são objectos de uma técnica aperfeiçoadíssima. Justifica-se então que lhes deixemos de chamar fenómenos mas os apelidemos de fenomenotécnicos. Exemplifiquemos: ao olharmos para uma gota de sangue que vemos? que é líquida durante pouco tempo, já que depois solidifica, que é vermelha e que é quente.Se, porém, submetermos essa gota a uma máquina que a analise, então a nossa gota aparece com um sem número de componentes que nela estavam escondidos ao nosso olho mas que a análise desvendou e nos trouxe à luz. Da mesma forma, quando vamos a um médico e ele nos pede para fazermos uma série de exames, ele fá-lo, primeiro, porque à primeira vista e apenas baseado nos sintomas que nós lhe dizemos e noutros que ele pode descortinar, quer ter mais fundamento, para depois poder actuar e, segundo, porque o importante para ele irão ser os resultados desses exames e não propriamente a pessoa que está à sua frente. Quando lhe levamos os exames, ele já não olha para nós mas para os resultados que os aparelhos técnicos lhe fornecem. A sua decisão acerca do que irá prescrever não está tanto em função da pessoa mas daquilo que a tecnologia lhe mostrou... Ora aqui está: o que é decisivo nos tempos que correm é que substituamos a palavra causa e o seu conceito pela palavra função com tudo o que isso implica. Entramos no mundo das probabilidades e como bem disse Popper" a maior das improbabilidades ainda é uma probabilidade".
As coisas já não podem ser explicadas por uma causa única, mas justificadas em função de uma multiplicidade de variáveis que podem ser lidas de diferentes formas por diferentes especialistas. Reparai apenas como os números das contas correntes do Estado são lidas pelos do Governo e seus apoiantes em confronto com os da oposição.Os números são os mesmos mas as consequências são todas outras...Tudo por causa da função, acrescento eu.
Para não parecer um pavão como a nossa redolha, hoje fico-me por aqui. Mas hei-de cá voltar.
XIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGGGGGGRAAAAAAANNNNNNNNNDDDDDDDDDDEEEEEE
1 comentário:
Lembrando popper, tu és aquele super heroi. Aquele dos espinafres... és se bem me lembro do aspecto, rijo como o ferro, mas sensivel, como eu!
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