Marcel Proust, em “Em busca do tempo perdido”, que,
confesso, nunca li na totalidade, realiza um notável exercício de memória de um
tempo que ele perdera mas que reconstrói admiravelmente: o da sua infância. Claro
que mais notável ainda é a sua capacidade criativa de o descrever, mas também é
enfadonho e até doentio que esse passado lhe seja tão presente. É que, admito: são
poucas e difusas as minhas memórias de infância. Mesmo sem o desejar, devo ter
concebido e feito correr um programa de selecção dessas memórias, tão exigente
nos critérios que só deixou algumas. E, mesmo que assim não fosse, reconheço humildemente a minha incapacidade de as reconstruir como Proust o fez. Tenho
muitas dificuldades em encontrar aquele tempo, ou porque está perdido ou porque
a minha memória o arquivou num dos seus cantos mais recônditos.
Todavia,
tudo indica que subsiste uma relação da memória com o passado. O changoto já
qui o declarou solenemente: a memória não encorrancha. Involuntariamente,
resgatamos acontecimentos da infância e revivêmo-los, reconstruídos, na vida adulta. Por um processo complexo, o nosso passado está permanentemente a revisitar-nos,
sem o chamarmos, ressuscitado por um cheiro, por um sabor, por uma imagem, por
um som…
Agora
mesmo, eis o que a minha memória foi represtinar: o velho Nicas, meu vizinho,
cuja imagem mais forte o coloca dentro de um enorme pio (em boa verdade nem era
muito grande, mas era essa a perspectiva do gaiato de 5 anos), ceroulas brancas
com listas pretas finas longitudinais, arregaçadas ao máximo mal tapando as
nalgas, marchando compassadamente no meio das uvas esmagadas; de vez em quando, agarrava no rodo e revolvia vigorosamente toda aquela massa meio líquida meio sólida da cor do que havia de vir a ser: de vinho. Eu apareço à
porta da loja, curioso, e ele:
- Anda cá ó roupinha afnéda qu’ê t’ensino a nadar aqui”.
Para além desta situação, noutras, com contornos difusos, não recriáveis, a minha memória regista que o epíteto de “roupinha afnéda” era-me bastas vezes aplicado. À sua maneira, o velho Nicas alimentou o meu auto-conceito de javarino que a idade, naturalmente, corrigiu.
- Anda cá ó roupinha afnéda qu’ê t’ensino a nadar aqui”.
Para além desta situação, noutras, com contornos difusos, não recriáveis, a minha memória regista que o epíteto de “roupinha afnéda” era-me bastas vezes aplicado. À sua maneira, o velho Nicas alimentou o meu auto-conceito de javarino que a idade, naturalmente, corrigiu.
Por
essa época, também, o mesmo javarino tinha o privilégio de acordar ao som de
fado de Coimbra. Nas manhãs mais amenas do Verão, dia novo de 7 horas, sem qualquer
acompanhamento de guitarra, só com a sua tonitruante voz, Mnéixquim Carrêras
plantava-se ali no vértice do Batoco em frente à minha casa e debitava, qual
Luíz Goes:
O sol anda lá no céu
Tão contente atrás da lua
Assim minh’alma anda
De castigo atrás da tua
Mnéixquim
Carrêras era uma figura invulgar numa pequena aldeia do interior profundo.
Tinha o 5º ano (antigo, equivalente ao actual 9º) o que naquele tempo fazia
dele uma das pessoas mais letradas da aldeia, vantagem que ele soube
rentabilizar: toda a vida ganhou a vida a dar explicações. Décadas antes do
ensino recorrente, o Carrêras foi pioneiro na educação de adultos. Todos os
“cavalgaduras” que o professor José “tanganho” Paula de Campos não conseguia
fazer passar no exigente exame da 4ª classe, todos os pastores, latoeiros,
sapateiros, albardeiros que foram obrigados a trocar a escola pela “arte”,
todos eles iam pedir ao Mnéichquim Carrêras, que a troco de umas moedas, os
compensasse da falta de oportunidade ditada pelas contingências das suas vidas.
Disso vivia.
O
seu método não era muito distinto do que era utilizado no escola regular,
salvo, talvez, as reguadas. Nem a exigência era menor: em vez de “cavalgadura”
ele não hesitava em mimosear de “martelão” todo aquele que demorava a
distinguir os advérbios dos adjectivos. A sala de aula era austera: uma pequena
assoalhada, paredes toscamente caiadas de branco, piso de madeira carcomida,
despida de qualquer mobiliário ou outro adorno a não ser uma espécie de
carteira de escola, de pé alto, adaptada propositadamente para que o aluno se
mantivesse em pé, estrategicamente colocada ao lado da única janela por onde
entrava a luz. Com voz forte, a mesma com que entoava as baladas coimbrãs, ele passeava-se ruidosamente
nas suas impecáveis botas de sola feitas à medida pelo sapateiro Guerrilhas, 5 protectores
metálicos em cada uma, por detrás do aprendiz tentando que ele aprendesse os
rudimentos, para a época, da gramática, da aritmética, da geografia (que neste tempo incluíam as colónias ultramarinas), da história de Portugal.
-
Repete atrás de mim, rapaz: os reis de Portugal da Primeira Dinastia foram D. Afonso Henriques, o Conquistador; D. Sancho I, o Povoador, D. Afonso II, o Gordo, D. Sancho II, o Capelo, D. Afonso III, o Bolonhês, D. Dinis, o Lavrador, D. Afondo IV, o Bravo, D. Pedro I, o Justiceiro, D. Fernando, o Formoso.
Se
ele não repetia af(e)nédo à segunda, lá vinha:
- martelão! martelão! martelão!
E o tratamento não fazia grande distinção entre o mancebo de 16 e o homem de 40 anos. Muita gentinha aqui aprendeu a ler e a escrever, outra tanta aqui apreendeu conhecimentos básicos mas essenciais para posteriores actividades noutras latitudes, mais lucrativas e se calhar menos rudes do que o pastoreio e demais trabalhos da lavoura – o movimento emigratório estava em crescendo no início daqueles anos sessenta.
- martelão! martelão! martelão!
E o tratamento não fazia grande distinção entre o mancebo de 16 e o homem de 40 anos. Muita gentinha aqui aprendeu a ler e a escrever, outra tanta aqui apreendeu conhecimentos básicos mas essenciais para posteriores actividades noutras latitudes, mais lucrativas e se calhar menos rudes do que o pastoreio e demais trabalhos da lavoura – o movimento emigratório estava em crescendo no início daqueles anos sessenta.
Aos mais adiantados, obrigava a saber na ponta da lingua:
- Os minerais classificam-se segundo a sua dureza, do menos para o mais duro: talco, gesso, calcite, fluorite, apatite, feldspato, quartzo, topázio, corindo e diamante.
O
fado de Coimbra aprendeu-o ele sem nunca ter posto os pés na cidade do Mondego.
Machado Soares, Fernando Rolim, Luíz Goes e mesmo José Afonso eram sofregamente
bebidos através da rádio Altitude que ele sintonizava no velho aparelho
blaupunkt, aos sábados à tarde.
E
nas manhãs de Verão lá comparecia ele na esquina do Batoco entoando, af(e)nédo
quanto baste:
Fui ao Mondego lavar
As penas das minhas mágoas
Minhas mágoas eram negras
Negras ficaram as águas
Para um roupinha af(e)néda de 5 anos, era uma inusitada forma de acordar. E um luxo!
1 comentário:
Uma bela estória amigo Anselmo. m relação à memória, quando tiveres 70, conversamos sobre esse aspecto!
Um abraço.
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