A água, a par da saúde e do trabalho com justa remuneração são, porventura, os valores maiores da sociedade contemporânea. Ao contrário do que habitualmente se defende os gostos e os valores são para serem discutidos e a prova é que nem todos gostam do mesmo nem todos hierarquizam da mesma forma os valores. por isso se discutem. Ainda assim ouso deixar estes que aqui vos apresentei como estando no topo da minha hierarquia.
A História ensina-nos que os grandes aglomerados populacionais começaram a aparecer junto aos grandes rios e/ou lagos, com terras férteis envolventes, no cimo de montes por mor da defesa natural e também, sobretudo depois dos grandes movimentos comunais com o aparecimento da nova classe laica - os burgueses - , nas encruzilhadas das grandes vias.
No caso vertente interessam-nos os rios e a sua importância decisiva para as comunidades humanas. A água é indispensável à vida e quanto mais perto e em maior abundância ela for , tanto melhor. É também fácil de ver que as terras mais férteis são as de aluvião, com aragem fácil, clima mais ameno, mais planas, enfim mais ricas em tudo.
A aldeia dos xendros pode servir de exemplo: embora mal nascida - devia ter nascido a partir do dr Ângelo para cima - faz o aproveitamento pleno do vale da ribeira com hortas pequenas de cultivo intensíssimo e é um regalo ver tudo bem tratado desde a Saramaga até quase às Águas quando confronta com a Casa Megre. Grande parte da alimentação da Aldeia é colhida nessas terras das duas margens da ribeira. A grande razão é porque há água e os poços nem são muito fundos e quase pegam uns com os outros. Todos regam e chega para todos.
Já não é tanto assim quando subimos e observamos os terrenos da serra. Bons tempos outros em que eu, velho Jonja e às vezes outros malinoos íamos caminho da serra, às endireituras da tapada do Pirolas e do Elias, do Alguitarra, do Barata e da Garriça, a armar costis às felosas e taralhões, piscos e rabitas, melros e cotovias e o que mais caísse. Crime, mas era assim.
A Garriça tinha uma língua que nem um braço e se mordesse, o veneno da mordidela deixaria muito mal o vitimado... Sempre atenta, baixinha, olho vivo e sagaz, ouvidos com antenas parabólicas, nunca deixava cair uma conversa e topava tudo. Não sei mesmo se dormia... Apesar de viver afastada do casario, numa casa granítica, mesmo ao lado de um eucaliptal basto e perto dos terrenos onde cultivava tudo temporão, andava sempre bem informada e espalhava novas ao vento. Rivalizava com Zagaia e Galfarra a apresentar os primeiros cebolos e as primeiras couves e tinha alface todo o ano, coisa rara ao tempo e que lhe rendia bom dinheiro porque a vendia a bom preço para os casamentos caseiros.
Segurava azeite nas mãos e até o pobre marido, o Caetano, andava sempre nas lonas... Era muito limbina.
A extrema da sua propriedade pegava com Barata e tinham um poço de meias. Aos Domingos não era de ninguém e Garriça tirava água às Segundas, Quartas e Sextas e Barata às Terças, Quintas e Sábados. Na semana seguinte trocavam os dias.
Quando o Verão apertava Garriça, pela calada da noite, punha o burrico à carroça onde já tinha dois bidões e rapava a água ao Barata. Era muito lambina.
A horta da Garriça verdejava e a de Barata, sempre estrumada, pouco dava, que a água era à ração.
Um dia Barata tinha-se ficado pela aldeia e quando ia caminho da tapada ouve o chiar da carroça. A lua ia alta e alumiava bem, escondeu-se e viu o serviço da Garriça, toda lembina. Deixou-a encher os bidons, esperou que viesse para casa, aparelhou a junta e vem com o seu carro carregado com um tanque de cimianto que lhe tinha trazido o filho João, que era bombeiro, com duas bombas de borracha, e dois baldes grandes. Faz vácuo com as borrachas e saca a água toda à Garriça dos bidons para o tanque. Como se não fosse nada com ele, regressa a casa. Cedo, tirava a água do pocinho de meias e vê chegar a Garriça com o seu burranco e carroça.
Quando esta, de repente, se dá conta que não tem água nos bidons começa a praguejar furibunda, numa linguagem intraduzível.
Barata, malandro quanto baste e feito mula: "Karraio de conversa é essa? uma mulher com esse palavreado?!" e a Garriça:" rouberam-me a auga que traguia aqui nos bidons e que tinha apanhado no poço de baixo...; E o Barata:« está baixo, está, o ladrão do poço! Há gente sem vergonha nenhuma...» e sai-se com esta para a Garriça: « Eh ti Maria, deixe-se disso, amanhã já aqui tem mais água» "Cabrões tireram-me a água aqui dos bidões....!»...
O Barata malino:« Vá lá que não lhe roubaram os bidões... sempre lhe deixaram o vasilhão... foram bons rapazes...!»
E remata: « Sabe como é que se apanha uma cabra mocha por um corno»?
A Garriça lampeira: " a cabra mocha num tem cornos, mê basbaque!"
E o Barata:« atão alimpe-se como me alimpou a água a noite passada: uma cabra mocha pega-se por um corno, mandando lá um».
A Garriça andou uma semana a pão trigo e água, a treinar-se para ir a pé à sra de Fátima a pedir água para os bidons. O Barata ouvia-se na Bemposta a rir.
XXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIII GGRRRRRAAAANNNNNNNNDDDDDDDDDDDDDDEEEEEEE
5 comentários:
Moral da história: há sempre um mais esperto que nós!
Mais um texto delicioso. Obrigado.
Nem sempre a esperteza vence a inteligência. E ainda bem!
Parece-me que, para além da Água e da Saúde, há outro bem inistimável e bem maltratado - a Paz... Com Paz.. até a doença se aguenta. E cura. Sem Paz... não há Saúde que resista. Em sentido restrito. E lato.
São sempre maravilhosas estas histórias de recordações de juventude.
Se Garriça tivesse as rodas da carroça bem lubrificadas com uns nacos de touchinho, Barata não teria ouvido o chiar da dita. A lembina tinha-se safo.
A guerra da água no passado. Vai piorar no futuro. Quantas Garriças e quantos Baratas não hão-de aparecer, mas com resultados menos engraçados.
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