quarta-feira, dezembro 09, 2009

A NOSSA FALADURA - CXLVI - ABOQUILHA ou Abequilha

O velho Talha Burricos era fino como um alho... Eu que o diga. Nunca queria o gás depois das seis. Ia sempre pelo lado de trás a bater à porta, deixava a bilha e depois ia à frente e bradava: "Eh! cachopo, fica-te ali a garrafa do gás, amanhein de manhein leva-me uma." Já sabíamos o que era de manhein. E o pior era que me calhava sempre a mim.... Era a vida.
Quem fornecia quer o vinho para a missa quer o pão ázimo para a hóstia consagrada era a Casa Campos. que, não sendo por aí além, nenhum potentado, tinha a vantagem da ser governada por três irmãs, qual delas a mais religiosa e a mais poupada. Assim se manteve até que a velha da gadanha as foi ceifando e pronto: acabou-se o vinho branco arinto exclusivo para o sr prior e o pão lascado para o corpo de deus. Posso dizer-vos que quer um quer outro eram deliciosos. .. Por altura da desobriga, até porque na aldeia, naquele tempo, ainda havia xendro com fartura, era necessário fazer muita hóstia... Por ali vinham o padre Lobo das Águas, o padre Robalo das Aranhas, o padre Tarcísio do Pedrógão, o padre Manel de Penamacor, o padre Fatela da Meimoa, o padre Baptista da Benquerença, o padre Agostinho, já sem paróquia, o padre Carreto, também já jubilado,..., era mesmo uma confraria, e todos confessavam a rapaziada de aldeia que se perfilava a cada um dos confessionários. De vez em quando os padres faziam intervalo, por via das regras e da bucha que nisso, primeiro o padre Zé Pedro e depois o padre Pinto não se poupavam: era à tripa forra.
Sempre vos digo que os petiscos eram de lamber ou não fosse eu quem compartilhava essas aras de bem comer e até, às vezes, a confecção com a ti Mari Rainha. Outros tempos. Mais ainda: nenhum de vós alguma vez comeu pão ázimo com fiambre e vinho branco de missa... é o cúmulo. Se um dia vos calhar essa oportunidade, provai e depois contai-me. A pena é que já não há fiambre como antigamente e menos ainda vinho branco arinto. Vai lá vai...
Bom, a Casa Campos não faliu, mas os tempos mudaram e o padre Pinto - de boa memória - encomendou o vinho ao Talha Burricos, esse mesmo que queria o gás logo às seis da matina.
A casa dela não era longe e nem precisava de levar o mais que famoso carro quadrado. Ajudava-me à bilha do gás, punha-a ao ombro e ALA!, batia ao portão, Talha Burricos aparecia prestes, entrava pelo quintalinho, sempre pejado de mato por mor dos agueiros não atolarem, subia quatro degraus e entrava na cozinha. Já a panelinha de ferro cozia o feijão pequeno das Taliscas e o ambiente estava amornado pela lenha de carvalho arrecadada em tempo e agora a dar um jeitão. Lá ajustava eu a bilha ao redutor, experimentava a ver se tudo estava nos conformes e: "pronto, já está, bom dia e até logo". Logo O Talha burricos atalhava: «onde vais com tanta pressa...? espera aí um pouco» e para a ti Strudes (Gertrudes): « Eh mocita, arranja aí um aboquilho e leva-nos à loja.» Não tardava lá vinha o belo casqueiro embrulhado em bragal de primeira em cesto de vime e uma bandeja com uma tora de presunto, uma malga de azeitona retalhada, um queijo cabreiro num prato de esmalte e, uma vez até me calhou que havia castanhas assadas, já descascadas.
Sai-se o Talha:« Toma tento no que digo! se o queres tornar a provar tens que manter o bico fechado...» eu fiquei a olhar e ele: « vamos a provar o vinho de missa , mas no te esqueças, bico calado». O pipo não tinha torneira, deitou aguardente para desinfectar a borracha, como lhe chamava, sorveu para um pucheiro e vasou para uns copos de alumínio que até reluziam de tão areados. « Vá, bebe!» meti uma azeitona, tirei o caroço e vou-me ao néctar. Aquilo ainda não estava consagrado mas já era sacro. Que pinga de estalo! «Anda lá corta aí uma fatia de pão e um naco de abequilho que hás-de beber um copo assim comédado!» A hora era boa, a fome melhor, o branco convidava e o aboquilho era de ginjas: ataquei... Mais um alumínio e um estalo: " oh ti Tonho, este inda é melhor do que o da Casa Campos! " « É pra que vejas que eu num faço batota... isto é o sumo da uva puro, nem uma gota de água. É assim que querem é assim que têm.» Lá lhe expliquei a razão de ser daquela exigência e bebemos ainda mais uma cartolinha.
Passado não muito tempo voltei à loja e já o pipo tinha torneira. Havia mais gente que sabia que o vinho de missa lhe tinha sido encomendado e desafiaram o Talha Burricos: 'Ó ti Tonho. dê-nos lá a provar o vinho do padre!' «Eh cachopos, eu até vos dava um provo, mas o vinho é tão bom qinté coalhou com'ó azeite: experimenta a ver se já corre alguma coisa...» Lá ia um mais lampeiro a ver se tinha sorte, mas nada. « Vês!? coalhou!» Eu caladinho como um rato, saí com eles mas depressa voltei: "como é essa do vinho coalhar"? « Aprende que eu não duro sempre: o vinho já está ali em barricas, tirei-o todo por cima e meti a torneira a fazer ver. Se não fosse assim, só com os provos já se me tinha ido. » Vai lá vai! porque é que o diabo sabe muito? porque é velho, respondem os entendidos.
XXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIGGGGRRRRRRRRRRRRRAAAAAAAAAAANNNNDDEE

7 comentários:

Anónimo disse...

Por falar em Padre Pedro era bem merecida uma lembrança perpétua pela grande obra social que fez na Aldeia, desde a tipografia, a farmácia, os mercados, o Centro Paquial e o Colégio, em sinal de gratidão.

António Serrano disse...

A homenagem ao que foi nosso Prior e abriu novos horizontes para muitos dos nossos jovens penso que seria mais que justa. Já dei conta da falha, na comemoração do centenário de "A União de AJP". No que se refere ao texto, não sei se foi o que o Autor quis dizer, temporal e funcionalmente o padre Lobo e o padre Tarcísio não podiam andar por aí como párocos de Águas e Pedrógão...

Zé Morgas disse...

Pinga dessa boa, tive o prazer de a provar, numa quinta algures num lugar, entre a Ponte das Taliscas e as Aranhas.
Também nesse lugar ouvi cantar o Padre Pinto, meu professor de Religião e Moral na Escola Preparatória Ribeiro Sanches, com um vozeirão que por certo se ouviria na terra dos Xendros.
Tempos que não voltam, que me deixam saudades.

João L Oliveira disse...

Não sei porque razão mas associo o nome da ti Mari Rainha a casamentos e a arroz doce .

pratitamem disse...

Ò Joni, não me digas quinda casaste na Aldeia? Mari Rainha Ainda? lembro que o meu irmão zé, casou na Aldeia com ela, como cozinheira! E nesse dia o Avô Cardeileiro, cantou o fado ainda. Eu na verdade aqui vos escervo, escervo, digo bem, a minha poesia! Estais todos como eu gosto, BEM! É com muita saudade que vos sinto! Belo texto CHANGOTO!

AC disse...

Mais outro saboroso texto, a evocar a singela fala das nossas queridas terrinhas, de singelas e puras gentes, e daqueles tempos imemoriais. Imemoriais e quase lendários, comparados com os de agora.
Nunca a mão vos doa, de ressuscitarem maravilhas destas.
Albertino Calamote.

Anónimo disse...

Histórias de ontem, para acompanhar com um bom tintol.

...
E depois temos aquela do nosso sacristão que, para justificar ao padre a míngua do vinho à hora da missa, se desculpava com a coruja azeiteira.

Haja saúde e corra o pipo!

chanesco