terça-feira, dezembro 01, 2009

A NOSSA FALADURA - CXLV - MORRINHA

Água de cuco só molha quem está enxuto, já dizia o velho comandante, que, mesmo com morrinha não deixava de colher azeitona. Era velho dum raio: nada o vergava, nem frio nem calor, nem fome, nem sede, nem doença, nem pão rijo, nem morcela já rançosa. O queijo, seu conduto preferido, deixava-o embrulhado em folha de botelha, no meio do arcaz da semente e, como não lhe punha indicativo, sempre que precisava dum, praguejava por céu e terra, a ponto da velha Pássara (era a parteira oficial de toda a aldeia - foi ela que me foi buscar ao Fundão) vir ao balcão da casa contígua a barafustar: "num viesse um raio que queimasse a língua, comandante do inferno! Já lá tens o lugar guardado" « Vá pra quem a lambeu, velha dum corno» O azedume era notório, mas mal ela precisasse dum chirrichichi de azeite, ou uma brasinha pra atear o lume de manhã, ou um golo de aguardente para matar a bicheza e desinfectar um dente que escarafunchava com um pau de travisco aguçado e lhe doía,..., logo a Pássara batia à porta do velho Comandante.
Não longe morava a velha Nazaréi, mãe de Zé Lopes, enxertador de nomeada, lagareiro afamado e angariador de povo para excursões a tudo quanto fosse visitável: Srª de Fátima, santa de Alenquer, capela dos ossos, Viana do Castelo, Gerês, Nazaré ... e mais caseirinho, a Srª do Incenso, do Bom Sucesso, do Almortão e da Póvoa, que sei eu, Santa Luzia do Castelejo, Serra da Estrela, barragem Castelo do Bode,..., nada lhe escapava.
Aos Domingos, depois de missa, lá andava ele de tasca em tasca, da Rosa ao Zé Rolo, do Chico ao Fatela, deste ao Cavalheiro, vinha ao adro, especava-se na estrada, sempre de livreta na mão, pronto a assentar o nome e a indicar o lugar na camioneta. A meio da tarde já não dizia coisa com coisa e não se cansava de apregoar as suas competências, que não havia na área enxertador como ele e que se às vezes lhe falhava uma enxertia, a culpa era do cobridor que não tinha cuidado e lhe desandava a pua que ele ajustara com a sua própria saliva depois de aguçada com um só corte da sua navalha enxertadeira, de tachas em freixo que ele próprio fizera, e que até fazia a barba aos pêlos das pernas de uma cachopa.
Já que se fala em enxertadores, é dever de xendro nomear o velho Cucharra, homem pesado, que já mal conheci, mas que a partir de meados de Fevereiro não descansava um dia a espalhar arintos, rufetes, rabos de ovelha, baldrões, ferrais, dedo de dama, uva formosa, moscatel e outras castas. Uma bomba, este Cucharra. Era capaz de andar, um dia a cavalo noutro, sem nunca se endireitar, sempre curvado a fazer finco nas cruzes, sem se queixar. Comia uma quarta de feijão frade com cebola e muito azeite, e um galo dos grandes, daqueles das bodas, não lhe fazia papo. Valente Cucharra: o nome advinha-lhe do facto de ter a mão encurranchada por mor de uma cortadela feita pela enxertadeira. Ia até aos Três Povos a sua fama, para Norte, e Alcafozes e Idanha-a-Velha ainda hoje têm vinha de enxerto do velho Cucharra.
Voltemos ao Zé Lopes e às suas excursões...
Duma vez tem uma ideia genial: queria comprar mais uma tapada limítrofe da sua na fonte salgueira e o dinheiro era curto.
Vai daí, andou dois meses a guardar garrafões de plástico vazios- inda eu lhe levei muitos -.
A excursão era à Nazaré. Encheu o fundo da camioneta com os garrafões e, a meio da viagem, começa a cair uma morrinha chata, miudinha, basta quanto bastasse.
Zé Lopes tinha-a fisgada e desde cedo começa a dizer que ninguém podia ir ao mar porque a água estava a ser analisada porque era do melhor que havia para o reumatismo. Ele tinha acautelado o caso e tinha escrito um postal ao Presidente da Junta da Nazaré que o autorizou a encher 100 garrafões de água do mar , mas cada um custaria 5$00.
Quem sofresse de reumatismo tinha que largar os tais 5$00, mas só ele é que podia ir encher os garrafões.
Assim foi. Os garrafões tiveram venda garantida e Zé Lopes lá angariou mais 500$00 de lucro, às abas da água salgada do Atlântico, que eram uma boa ajuda para a compra da Tapada.
E o caso ficou ainda mais sério e a veracidade do diagnóstico reumatismal foi exponenciado quando Manta-Rota, seu sucessor nestas andanças excursionistas, que entretanto tinha espetado uma sorna, devido aos etílicos, lança os olhos ao mar e exclama:« A água há-de ser mesmo boa para o reumatismo... Olhar além... inda há bocadinho a água chegava ao cimo do paredão e agora já vai ao fundo. Os gajos têm-se fartado de vender água» Todos olharam e confirmaram.
Zé Lopes asseverou: "Só lá apanha água quem tiver ordem, mainada". A morrinha recomeçou e até à aldeia ninguém falava doutra coisa senão do jeito do Zé Lopes para aquelas lides.
XXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIII GGGGGGRRRRRRRRAANNNNNNDDDDDDDDDDDDEE

6 comentários:

Zé Morgas disse...

Morrinha, como ela molha. Já apanhei alguma de mota, não há costura de fato que lhe resista, é encharcanço até ao osso. Até doi.
Zé Lopes. Faz-me lembrar uma história de um personagem frequentador assiduo de uma casa, com o nome de um pássaro que por aqui habita na lagoa de santo andré, o galeirão, que uma noite, com a maré vazia, vendeu meia dúzia de lotes na praia, a uns ambiciosos por terem segunda moradia junto ao mar. Mais, um desses gulosos pelos lotes, jogador do clube do coração do vendedor, foi por ele alertado para não comprar nada, mas, porque o negócio era muito apetitoso, sempre fez questão em deixar o sinal do acordo. Colocaram as estacas a sinalizar o lote. Espanto o de todos quando pela manhã e com a maré cheia, nem lotes nem estacas à vista.
Teve azar o personagem vendedor, foi bater com os costados ao Pinheiro da Cruz.

António Serrano disse...

E eu com tanta "cura de reumatismo" aqui ao pé. A do Portinho da Arrábida é que dá cura garantida, bem geladinha. Vou pensar no assunto, pois reumatismo há cada vez mais . E água de qualidade não falta por aqui. Obrigado, como sempre, pelo texto magnífico. Darei comissão nas vendas de água "Rio Azul"!

João L Oliveira disse...

Por causa de jeito para lides e ganho de comissões anda muita gente a negar hoje o que fez ontem .....

pratitamem disse...

Epá ó joºao aidana andas í na verdADE TUDO surge igual, parece que o nosso tutano é feito de Amigos que nos deixam felizesm, Isso. É muito bom!

pratitamem disse...

pra mim . nada. me leva! Já Amo, o resto é, tudo o resto. É JABARDO.

João L Oliveira disse...

Bons olhos te vejam -Pratitamem !!!

Estive a reler uns antigos textos dos Irmãos K&C com aquelas receitas do osso da suã e e do arroz á cao reles, na altura anda pensei que iamos ter um blog com 2 estrelas Michelin .
Não há uma receitazinha para esta consoada ?