sábado, fevereiro 21, 2009

A NOSSA FALADURA - CXXVIII - CASQUEIRO

Eram quatro os fornos que trabalhavam para o povo. Não se podiam considerar comunitários, já que tinham dono e forneiro. O povo, melhor, as mulheres do povo, no entanto, cozia(m) o pão em qualquer deles: em frente às escolas velhas, o forno da D. Carminda, onde pontuava como forneira a ti Maria Bondita, não raro, coadjuvada pelas suas duas filhas, na 5 de outubro o forno do ti Mné Alfácea, no Beco da Ribeira o do Mija a Parede e no Oiteiro, à direita da barreira, o da Figo Seca.
Não havia moleiros na aldeia, que sejam da minha lembrança. Com toda a certeza, deve ter havido porque os moinhos de vento, tanto à direita como à esquerda do alto da estrada, atestam esse mister. A ribeira nunca correu todo o ano, mas falava-se no moinho dos Casacos, mesmo onde a ribeira tem uma queda de água em socalco e lá está (ainda estará?) a levada que fazia mover a roda da azenha.
Nos meus tempos de garoto, o moleiro vinha de Penha Garcia e trazia a farinha moída, centeio, milho(pouco) ou trigo, que levava uma semana antes e moía na sua azenha no Ponsul. Era o ti António Beringuilho.
A mula que sempre o acompanhava era uma animal de se lhe tirar o chapéu: alta, espadaúda, crina farta, castanha escura, reluzente, arreios sempre a brilhar, levava 5 taleigos como se não fosse nada. Valente animal, mansinha, nem era preciso prendê-la à ferradura do Agostinho Ratado. Era uma mula egueira, orelha curta, viva de olhar e dente sadio.
Aparte o Beringuilho, todos os comércios faziam a troca da semente por farinha, mediante o pagamento da poia: o taleigo da semente tinha dois alqueires e perdia a dízima.
Para facilitar começou a pesar-se naquelas balanças decimais cujos pesos permitiam alguma batota que um dia vos explicarei.
Faziam-se trocas no Fatela, no Cunha, no Zé Rolo, no Zé Júlio, na Troa, e periodicamente passava o Zé Oliveira que levava a semente e deixava a farinha. Até que começaram as sacas e os pacotes e se deixou, a bem dizer, de semear cereal. Lembro-me bem dos quintos e de todos os cabeços até à serra da Marvana e da Raposa serem semeados de centeio, na maioria, e algum trigo.
Quem fazia o casqueiro tinha que acarrejar a lenha para o forno, excepção no do Alfácea que era permanentemente abastecido pelo Chamiço que dava também a lenha para o lagar quando trabalhava. Claro que cobrava poia, tanto no forno como no lagar.
A sala do forno tinha a toda a volta uns baturéis onde as mulheres pousavam os tabuleiros com o casqueiro (e ou as bicas) já finto(as). Cada uma delas - o forno metia quatro tabuleiros - tinha uma marca que podia ser uma caruma, um pau de esteva, ou como ainda hoje é o meu carimbo, tinham um sinete que timbravam no cimo do pão antes de o forneiro o meter, por mor de não baixar e assim não haver dúvidas de pertença.
A periodicidade da cozedura variava em função do número do agregado ou das fainas do campo, mas era hábito uma cozedura cada 15 dias.
Pode parecer estranho a quem não viveu neste tempo, mas uma caixa de fósforos dava para um ano e fermento para o pão era também coisa que não se gastava : os fósforos eram substituídos por um tição que se pedia à vizinha que já tivesse o lume aceso e o fermento era vantajosamente substituído pelo crescente, que era também cedido por quem tivesse pão bem finto.
A isto chama-se economia.
Ao sair do forno, o casqueiro era embrulhado num cobertor dentro do respectivo tabuleiro e era lentamente que arrefecia. Na verdade, se o pão arrefecer ao ar, a côdea solta-se do miolo e não fica nada de jeito. Nunca se comia no dia em que era feito. Primeiro deixava-se assentar que era para luzir mais. No dia, lá se comia uma biquinha ou fazia-se uma ( taborna) = tibórnia .

O velho Estopa, naquele Verão tinha ido para os quintos, para lá do Frade e do Batcharel e para não terem de se levantar ainda mais cedo - é preciso notar que se trabalhava de sol a sol - os homens decidiram que dormiam por lá. O almoço seria levado, cada dia, por uma das mulheres e eles tinham comida de seco para o desjejum, a côdea, a merenda e a ceia.
Só que o Estopa, um dia antes de acabar a estrafega do quinto, foi acometido de tal borreira que se viu nas horas del conho.
Papel não havia e Estopa tinha que limpar o traseiro com palha molhada dos nagalhos.
O Sol era inclemente, Estopa suava, não podia atrasar-se na linha do corte e esgadanhava-se todo para ir a par, mas lá lhe vinha outra vez a vontade.
As ceroulas molhavam-se e secavam, Estopa sofria atrozmente e estava mais vermelho nas partes que um pimento para pimentada.
Lá chegou a casa, a arrastar as botifarras, diz à mulher para lhe aquecer água, tempera-a com um pouco de fria, mete as nalgas na selha, lava-se com sabão macaco, a sorver ar e a assobiar para não gritar.
A mulher que tinha cozido, e o cheiro do casqueiro desafiava a fome, preparava uma taborna morna. Só que os assobios do homem aguçam-lhe a curiosidade e quando se depara com aquela vermelhidão: «oh! home, isso está feio; espera aí que vou por um pano macio e já te limpo.» Só que Estopa não consentia que lhe esfregassem, nem mesmo com pano macio, as pudibundas partes e a mulher sai-se com esta:« põe-te aí de cu pró ar ao pé do lume, maneiras junto à candeia que eu boto-te aí um pouco de farinha triga que me sobrou do pão pra secares».
Estopa, desacorçoado (=descoroçoado) como estava, nem hesita. A mulher lá espalha a farinha, mas os resíduos gasosos da borreira entraram em descarga e quando ela estava mesmo por trás, sai-lhe uma bojarda que salpica a cara da mulher. A linguagem trocada não é traduzível, mas não vos é difícil imaginá-la.
A taborna ia ficando por comer mas a necessidade obriga e mesmo no meio do cheiro lá a roeram enquanto o casqueiro, esse, estava a salvo, abafado no cobertor e não ficou garanhotado como a cara de Angélica.
Acidentes.
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6 comentários:

António Serrano disse...

Mas que "taborna"!
Uma delícia!!! Viajei por tempos e espaços que, há muito, "deram o que tinha a dar"...
Pelo passeio o meu bem hajam!

Anónimo disse...

Mai nada!

Anónimo disse...

Pois é! Não correu muito bem à pobre mulher! Mas ele também não estaria muito bem, suponho....
Um abraço!

Anónimo disse...

A esta hora, quase 1 da manhã, já ia um casqueiro desses, acompanhado de uma chouricita daquelas autenticas.

João L Oliveira disse...

"Para facilitar começou a pesar-se naquelas balanças decimais cujos pesos permitiam alguma batota que um dia vos explicarei." Palavras de changoto que me aguçaram a curiosidade ..conta ! conta !

Anónimo disse...

Por alturas do Carnaval, sobia bem uma choradela de Entrudo à maneira do Ti Mané Fretas.
Vamos a isso?