Em tempos outros, jornais houve que tinham gente, iniciativas e textos que pouco têm a ver com os de hoje. Foram acabando: o Século, o Diário de Lisboa, República, o Jornal, ..., todos se foram... Bom... As tristezas não pagam dívidas e as saudades não aliviam dores...
Bem, o Século, tinha, creio que às Sextas, uma rubrica, cujo título era: há sempre uma história para contar.
Também hoje tenho uma história para vos contar:
Zé Tanganho foi professor de muito xendro. Passei-lhe na sala pouco tempo e fui depois estrear aquelas que, em tempos, se chamaram as escolas novas. Era uma figura alta, de voz tonitroante e com uma vara - tanganho - que quase atravessava a sala e fumador de mata-ratos impenitente, sempre pachorrento no andar, ou não fosse o dilecto marido de D. Carminda, que nunca soube andar depressa.
Tanganho tinha um discurso pouco vulgar e uma forma de dizer única: ora falava alto e na mesma palavra alterava a tonalidade e quase ninguém ouvia as átonas. Raramente chamava alguém pelo nome. Ia baptizando aos poucos os alunos e as alcunhas que ele deixou ainda hoje se ouvem: rapa a unha, chiquinho, pata branca, maregas,....
A rotatividade não era um costume enraízado e, como muitos sabem, as classes eram unisexuais. Professores davam aulas a alunos, e professoras a alunas. Assim mesmo. Foi assim durante muito tempo.
Como se dizia : "TINHA LÁ PORRAS O PROFESSOR TANGANHO".
Ao ano a que me reporto, Tanganho tinha a quarta classe e, como também era uso, o professor que tivesse este ano curricular de fim de ciclo, a antiga escola primária, essa do livro único e muito mais coisas únicas, espremia-se e espremia os alunos que aprendiam metade de vontade e outra metade à tanganhada.
Como as escolas novas estavam a ser ultimadas, alguns alunos, acabadinhos de entrar na escola, - eu fui um deles - foram repartidos pelos diferentes professores.
Assisti a sessões de desafio, um contra um, que me ficaram na memória.
Cada um dos da quarta tirava uma senha onde estava escrito um posto da tropa. Depois degladiavam-se, cabo contra capitão, sargento contra major ,... e assim as alternâncias de posto eram uma constante. O exame da quarta era assim preparado. Havia bordoada com fartura mas tudo se aguentava e nós, os da primeira, íamos vendo o que nos esperava.
O exame era feito na vila e Tanganho ameaçava sempre com o júri. Ora nós nunca tínhamos visto um júri...
Tanganho lembrava: "quero toda a gente bem limpinha, sapato a reluzir, cabelo penteado e sem garanhotos, corpo a cheirar a sabão, orelhas sem cera, nariz limpinho e olhos sem remela, calça bem vincada e gravata comédado, tudo caladinho e à hora."
Ia preparando os alunos, ferrava-lhes tanganhadas à bruta,e, por vezes, tinha saídas incríveis. Posso, sem temer errar, garantir que nunca encontrei, ao longo do tempo que depois tive oportunidade de conviver com ele, ninguém que tanto soubesse de ditados populares , como prever o tempo meteorológico, condições e épocas de sementeiras: Um Borda D'Água.
Regressando à escola e à preparação para o exame , um dia Tanganho sai-se com esta:
tomai tento que o júri vos pode perguntar coisas que não vêm nos livros. Tendes que estar preparados e responder certo e a eito. Não quero ninguém empapado com garanhotos na fala. Por exemplo: o júri pode perguntar assim - QUAL A COISA MAIS VELHA DO MUNDO? e vós tendes que vos saber sair deste emaranhado. Ficais a saber que a coisa mais velha do mundo é o tempo, porque se não houvesse tempo nem Deus tinha mandado fazer o mundo. Até demorou seis dias a dizer para se fazer.
Quem não concordou com a explicação foi o zé da bogalha que levantou o braço. "Diz lá o que queres, oh regedor do cemitério."
- Oh senhor professor, eu não posso responder assim
- Então porquê
-A minha mãe diz que eu nasci antes do tempo...
Uma tanganhada pelas orelhas abaixo foi o prémio para tal honestidade.
Eu fiquei confuso porque afinal o da bogalha tinha razão mas fiquei quedo e calado e continuei a escrever a cópia com a caneta de aparo no caderno de duas linhas. Os cadernos daquele tempo eram muito irregulares, um tanto amarelos e não eram raras as farpas que se atravessavam no caminho da escrita. Foi o que me aconteceu. O aparo, acabadinho de molhar no tinteiro de porcelana, empancou num desses obstáculos e respinguei a folha toda. Fui mostrar: «Oh rapa a unha, escreves a olhar para o ar e depois fazes este lindo serviço. Se estivesses a olhar para o que estavas a fazer não empancavas na farpa»; levei meia tanganhada e tive que repetir a cópia toda.
Vem isto tudo a propósito de que há sempre uma história para contar...
Acontece que na crónica anterior saíu o termo garanhoto sem qualquer explicação já que nunca tinha aparecido.
Tal como o zé da bogalha também veio antes do tempo.
A tempo vos deixo com um XXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIII
5 comentários:
Continuando no tema do tempo ... diz o escritor angolano Pepetela que " há sempre tempo antes do tempo " , porventura nos dias de hoje , mais recentemente ,há talvês quem já nã0 concorde e simplesmente já náo tenha pachorra para esperar pelo tempo. Esperar pelo tempo supostamente deveria ser .. ENVELHECER .
Changoto...volta depressa com outra história ..que pena não terem 3,4 paginas
Mais uma bonita história do meu tempo.
Ainda me lembro das canetas feitas dos gambonitos que o Loscas trazia da Portela. Era só parti-los aos bocados e espetar-lhes um aparo!
Um abraço
Fica-se com "fome"... à espera da que vier a seguir. Que seja depressa, que esta foi despachada num instante. Com o agrado de sempre.
Bem hajas!!!
Ironia do destino :o changoto levar meia tanganhada do tanganho.
Mais uma bela história, para variar.
Se ainda cá andasse, eu era bem capaz de apoiar o Prf. Tanganho para ministro da educação. A pedagogia da tanganhada é rudimentar, mas podia ser que funcionasse.
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