quarta-feira, fevereiro 04, 2009

A NOSSA FALADURA - CXXVI - AMARUJA(E)R

Vamos lá então: coza-se na mesma panela uma metade de galinha campestre, uma chouriça das verdadeiras, daquelas em que o unto escorre pelos dedos, uma faceira de cerdo, bem limpa de pêlos e com a orelha sem cera, mais um naco de osso da sevã. Saquem-se as carnes, reservem-se, deixe-se arrefecer maneirinhas a água, coe-se. Entrementes, faça-se uma cebolada farta, com tomate já sem pevide e pele, umas tiras de pimento, um ramo jeitoso de salsa. Quando já tudo estiver bem suado, junte-se um pouco da água coada deixe-se levantar fervura, triture -se tudo com a varinha e faça-se um caldo semi líquido, aí para o gelatinoso, vá-se deitando carolo de milho, sempre mexendo, em lume brando para não ganhar garanhotos e tenha se cuidado para não haver bispo.

Enquanto isso coza-se em água abundante com sal (pouco) uns grelinhos de nabo, daqueles mesmo que amarujam. Em estando satisfatórios escorra-se, esprema-se levemente, frija-se uns dentes de alho, sem grelo, numa sertã larga, deixe-se amolecer, deite-se os grelos espremidos, envolva-se e una-se com ovo batido. O milho deve ser tapado para não formar coroa. Corte-se a orellha, parte da faceira, metade da chouriça e desfie-se meia galinha. Num tacho, ou melhor, na panelinha de ferro, estale-se uns alhos espalmados, a cutelo, com casca, em azeite, uma folha de louro, despeje-se a carne, envolva-se bem, arreganhe-se com um salpico de vinho branco, deixe-se evaporar, regue-se com um pouco de vinagre aromatizado, cubra-se com coentros viçosos e sirva-se de imediato com os milhos de carolo e o esparregado ligeiramente amargo - por isso amaruja. Ao fim, coma um Kiwi. Se gostar, acompanhe com vinho já ambientado, tinto, de uva, ou ,então, chá morno de salva brava, sem açúcar.

Lamba-se e limpe-se.

Vá passear com o/a seu/sua companheiro/a, de mão dada, que o amor não tem que ser escondido, regresse a casa, vá para a sua varanda, se a tiver e se tal for tempo, ofereça um simples copo de água, traga outro para si e falem de coisa nenhuma ao sabor do que vier. Mainada.

Lembro-me de três excelentes cozinheiras de boda, afora eu, que não tinha tempo para tão demoradas contendas: ti Maria Rainha, Celeste do Espeto e Maria, olho de lata.
Por razões que não adianta a ti Maria Rainha, levava a palma. Foi confeccionados por ela, que papei os melhores coelhos no forno e as melhores chanfanas.
Eu, curioso como era, quase sempre convidado para todos os casamentos, tinha a vantagem de entrar na cozinha porque ia com o mais que famoso carrinho quadrado a levar a bilha do gás. Metia o bedelho e Ti Maria dava-me a provar. Eu servia de aferidor. Sabia sempre o que havia e reservava-me sempre para o melhor, porque sabia a ementa completa com antecedência.
Aprendi muito com ela e por isso vos ofereci a receita acima. Experimentai e logo me direis.
Padre Pinto rivalizava comigo em quantidade de bodas. A vantagem pendia para o meu lado, mas foram imensos - ainda havia povo naquela altura - aqueles em que fomos comensais.
O interessante, e nós já nos ríamos, é que havia um copinho famoso que percorria todas as bodas e que ficava sempre para o Sr. Prior.
Num casamento que teve lugar na loja do Balecas - aquele que numa boda comeu sozinho um galo assado no forno com uma travessa de esparregado e um alqueire de batata frita, três
litros de vinho e dois pratos de arroz doce com muita canela - ali à barreira do Oiteiro, frente à casa da Espeta Figos, nesse casamento, lá estava o famoso copinho à frente do Sr. Padre Pinto. Olhámo-nos, rimo-nos, sentámo-nos, iniciámos o repasto com uma sopinha de grão com massa e hortelã, arrancámos para um arroz de cabidela de coelho, continuámos com fígado com esparregado de nabo amarujante e o vinho sempre a escorrer. Eu ficava sempre com um garrafão aos pés e servia as pichorras ali por perto. Só que o copo de Padre Pinto - lindo era mas pequeno - exigia enchimento continuado.
Foi nesse casamento/boda que fiz a quadra que durou anos: Ao Padre Pinto dava jeito/ Não um copo tão perfeito / É de tal modo pequenote/Que o faz andar a trote. A malta riu-se e o que é facto é que nunca mais o abençoado do copo ajudou a engolir esparregado de nabo a amarujar nem chanfana de cabra ou badana com puré.
Hoje não há lição teórica. É dia de prática. Mãos à obra.
XXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII.

7 comentários:

Anónimo disse...

Comeste nabos a amarujar e lembraste-te desta.
Estariam pouco amargos, pois a recordação é gostosa!
Um abraço.

António Serrano disse...

Comi até não poder mais. Bebi até ver as letras a dobrar. Alimpei os beiços. Alevantei-me. Lavei as mãos. Estou satisfeito. Obrigado. Deus lhe pague, dando-lhe força e saber para continuar a servir-nos estes petiscos.

Anónimo disse...

Assim...preto no branco, gosto mais!
Um abraço.

Anónimo disse...

Pois eu, gosto de qualquer maneira. E ainda fiquei com água na boca...

João L Oliveira disse...

eu estou proíbido de comer estas coisas ..é uma dor de alma ....

João L Oliveira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João L Oliveira disse...

Mais um ou dois textos assim tens que mudar o titúlo de : A nossa faladura - para : A nossa manjedoura . Era só uma piada.(sem sal)

Excelente texto Changoto..

Ora , eu próprio noutra época tive tambem a oportunidade durante algum tempo de ir a quase todos os casamentos lá da terra e arredores . Por 10 mil escudos , preço especial para casamentos , os famigerados paralelos do ritmo Decreto- Lei espalhavam a sua graça e arte em tudo quanto era festa nupcial. Tendo em conta que o preço para arraial de Verão orçava os 45- 50 mil escudos , os nubentes davam todos por bem empregue o investimento numa banda musical que tocava , animava e abrilhantava aquilo que geralmente era feito por acordeonista ou gravador.
Tenho aqui a manifestar que guardo no memória exelentes momentos de sã camaradagem , alegria e boa disposição , orgulho-me mesmo que por momentos ter feito gente um pouco mais feliz e alegre ao som de musica que não importa a qualidade era a possivel nequela altura.
Tambem naquela altura, muito sinceramente, não era o dinheiro que nos movia , movia-nos a vontade de nos divertir de beber uns copos ,de viver e de divertir os outros - - hoje , visto á distançia do tempo ...as saudades dizem-me que consegui tudo isso - Não sáo grandes objectivos dirão os senhores . Nem tudo na vida tem que obrigatóriamente ter um objectivo ou um propósito grandioso eloquente e sério - A vida ..viver ..viver a vida ..divertir-se ..saber divertir-se ..ter tempo ..para si para seu filhos ..não será porventura O maior dos propósitos?