quarta-feira, julho 13, 2005

A NOSSA FALA - XV - AMELANCADO

Zé pantelhão era latoeiro. Botava pingo de solda em caldeiro, pote ou cântaro. Fazia a mistura do chumbo e do estanho num rego de cimento. Aquecia o ferro numa pequena forja onde a hulha era afogueada com uma pinha e uma ventoinha que se rodava manualmente como uma manivela e que ele mantinha impecavelmente oleada. Numa latinha ao lado, pendurada dum prego retorcido, tinha o ácido que permitia a ligação dos elementos e, assim, unia o que estava desunido e permitia coalescência de materiais.
Percorria a parte sul do concelho em passo certo e no seu andar meneante fazia lembrar a banda da música naquele bamboleio sempre certo a partir do abaixamento do braço do mestre que indicava o início da marcha.
Tonho de aldeia, vizinho de pantelhão, sozinho quase conseguia reproduzir o som da banda. Só ele foi mais caminheiro andante do que pantelhão. Nem contrabandista ou comerciante de figo seco e outra marouva, que subiam a marvana e a serra da raposa e malcata até ao sabugal caminharam o que tonho de aldeia calcorreou. Foi visto muitas vezes em Lamego, a norte, e em Portalegre a sul e todo o distrito o conhecia. Figura ímpar nas suas calças pelo tornozelo, santo de ocasião pendurado em tabuinha segura à camisa por um alfinete já enferrujado, pé encardido metido em sapato avantajado, almotolia à frente e alforge atrás, navalinha atada à presilha da calça por baraço tão encardido como os pés, marreca acentuada e, claro, a mão direita sem três dedos, fruto de um rebentamento de uma bomba de foguete no S. Bartolomeu. O pai, o ti mnel ceguinho já trôpego acompanhava o tonho e de vez em quando tocava uns acordes numa guitarra com um som único. Deles se conta que uma vez o tonho foi pedir esmola a uma casa de campo e lhe deram pão com chouriça. Ele encheu o papinho com ela e ao velho deu só o pão seco. O velho, cego, mas de olfacto apurado, chamou-o à atenção: ó tonho cheira-me a chouriça! O tonho para além de lhe chamar mal agradecido esperou a oportunidade e ao passar dum regato junto a um sobreiro diz para o pai: salte que é rego! O velho saltou e bateu de caras com o sobreiro: rais ta parta tonho! porque não me disseste que estava aqui o sobreiro? E o tonho: então cheirou-lhe o pão a chouriça e não lhe cheirou o sobreiro a cortiça? Eu não acredito que o tonho tal tenha feito tanto mais que era ainda ele que mais ajudava a Maria da Luz que ainda anda por aí e as filhas do Zé Ambrósio.
Então onde é que está o AMELANCADO?
Aí vem ele: o tonho amelancou a almotolia que ficou a verter no fundo. Foi-se ao pantelhão e pediu-lhe: ó zéi, bota-me lá aqui um pingo no fundo da armetria e desamelanca-ma lá! O pantelhão olhou e disse: «ó tonho, não vês que não pode ser… o pingo não pega na gordura do azeite e o bico da almetelia não entra na ponta da bigorna.
- Então e agora? - pergunta o tonho.
- Arranjas uma botelha das do vinho e assim já não se amelanca nem precisas de pingo.
Lembrou-se o tonho da cabaça onde em garoto metia as agúdias e não foi de modas: mais um baraço no pescoço da cabaça e pronto! Aí estava o tonho armado com a nova almotolia.
Arrancou o tonho todo contente em passo de banda de música: tá,tá,tá,tárátáta, pópopó tchim,tátata,pópoótchim…e encontro-o eu ao fundo da lagariça : ó tonho, então que dizem os jornais? O tonho espirra a pregar um susto e invariavelmente: “a guerra vai acabar! Espetaram um prego no cu do Salazar”!

8 comentários:

Anónimo disse...

Sempre que o Tónho da Aldeia ou Tónho Maranhão é tema de conversa, lembro-me dos versos, inumeras vezes repetidos, com que ele brindava as raparigas, a quem começava por perguntar o nome:

"Vou cantar uma cantiga,
Vou cantar uma cantiguinha
Á menina Albertina
Que é uma boa rapariguinha

É uma boa rapariguinha
Está coberta com um véu
Eu gosto muito dela
É um anjinho do céu".

Anónimo disse...

Pôrra meu! és danado prá escrita. e pra relembrar bons tempos e pra confirmar a boa juventude que tivémos. e tudo! prontos!

Anónimo disse...

Voltei a abanar a cabeça duas vezes e a dizer pra comigo, sim senhor! É Impressionante. Este Post, Changoto, merece um outro comentário que em momento de mais inspirada veia, aqui espero deixar. Bem hajas.

karraio disse...

Tonho da aldeia, tonho das baracinhas, tonho maranhão, consoante a zona entre o Tejo e o Douro. Natural de Aldeia do Bispo, cidadão da Beira Interior. Aí vai uma pequena história, não do tonho maranhão mas que atira para ele.
O Xquim bombeiro, no tempo em que fazia uma perninha na selecção de futebol xendra tinha o hábito de usar a finta à tonho maranhão: frente ao adversário abria bruscamente os braços na sua direcção, como quem lhe vai a bater, ao mesmo tempo que fazia sair da garganta, assim uma espécie de pigarreio muito curto, estão a ver... o susto que o tonho aplicava a todos os garotos. Num jogo, creio que no Pedrógão, o árbitro, certamente um ortodoxo da arbitragem, não foi em fi(n)tas inovadoras e espeta-lhe o amarelo. Não fosse isso, e o bombeiro teria prosseguido no terreno já que a finta resultou porque o outro ficou momentâneamente atarantado.
Um mestre também no futebol aquele tonho maranhão. Nem o Cristiano Ronaldo sabe esta finta.

Anónimo disse...

Tinhamos o Tonho da Aldeia e o Fernandinho maluco. Agora temos o Torrão do Pedrogão e o mujahidin da Meimoa.
Divertimo-nos mais mas é um bocado caro!

Anónimo disse...

Já não me lembrava, da finta do Xquim bombeiro, mas agora que o Karraio me fez recordar, foi uma boa gargalhada.
Mas a verdade é que a puta da finta resultava sempre e até deu uns golitos. O próprio Xquim, tinha tempo pra largar uma gargalhada entre a finta e o remate. Saudades desse tempo!

Anónimo disse...

Uhêêen...

Anónimo disse...

Visto de fora e lido daqui, um tipo tem de repetir: belos textos - os personagens ajudam -, pequenas grandes histórias, um excelente blog!