Surreição da barreira tinha muitas características: a falha dentária que tinha do lado esquerdo da boca permitia-lhe lançar reboludas escarretas a uma distância invejável; (não ganhava, é claro, àquele americano que cuspia um caroço de cereja a vinte e seis metros - os americanos são malucos - ); as alpergatas que calçava, a bem dizer, estavam cosidas aos pés, já que nunca as tirava nem para dormir; as orelhas, essas, com um pouco de feijão branco alimentavam uma família, mas tal volumetria em nada impedia que fosse mouca a valer, e a remela dos olhos, se a desfizéssemos num frasco, dava cola para colar todos os selos das cartas que o ti emídio escrevia durante um ano; as saias eram sempre de flanela e não sei se ia mudando as de baixo para cima se as de cima para baixo, já que o padrão era sempre o mesmo; o mesmo se podia dizer da blusa, sempre de chita da tabela, com um elástico ou fita de nastro, não sei bem, quase ao fundo, de modo a fazer um folhinho arregaçado, tornando-a numa marafona de monsanto; o cabelo era todas as manhãs cofiado após a ligeira lavagem de cara (mais só boca e nariz), depois apanhado e espetado com um gancho daqueles com que se tira a lia das tripas do porco no dia da matança, quando as mulheres vão à ribeira lavá-las e virá-las; mas a mais marcante característica, para além de morar paredes meias com o calça defuntos, era o facto de andar sempre com umas pedras no bolso do avental, também ele de chita da tabela, e que lhe serviam de pesos medida: se comprava arroz o cartucho teria que ser pesado não pelo peso aferido do merceeiro, mas pelo calhau que ela dizia que pesava um quilo. Mas tanto comprava como vendia. A balança eram uns cambos (espécie de fateixa com garrancho dos dois lados e que eu algumas vezes lhe pedi para tirar os caldeiros do fundo do poço com uma corda atada a um dos lados) ; a voz era do mais roufenho que imaginar se possa, teimosinha quanto baste e desconfiada de tudo e de todos; soltava as pitas e nenhuma se escapava sem ela lhe tomar o cu a ver se trazia ovo. Fazia assim: pnina, pnina, pnina, pipipipipi, gacha gacha gacha, pipipipipi ,...,e as pitas agachavam-se, ela metia-lhes o dedo e poisava-as delicadamente no chão. Guardava-as até lhe parecer que já tinham esgaravatado o bastante e papado a areia para a moagem e voltava a chamá-las: pipipipi, pnipniapnina... e elas lá entravam em fila para a loja. Aí esborova-lhes pão ou espalhava-lhes uns bagos de milho. Só quando estivessem todos comidos é que lhes deitava mais.
Duma vez, gastei eu metade do meu latim para lhe provar que com a pedra dela ficava a perder, que o meu peso estava legal e que não podia utilizar o calhau na balança aferida, etc. etc. e vai ela: " olha o ingrumêncio de merda a fazer mangação de mim, deixa-me cá ver a tua mãe que logo te digo...ingrumêncio!
Era madrugadora e à passagem da carreira do chico júlio aí estava ela com a bacia no batorel a cofiar o cabelo, dava conta de tudo o que passava e às vezes partilhava as suas convicções com a vizinha quase de frente, a velha espeta figos, mouca como ela e , então de manhãzinha as vozes das duas ecoavam pelo oiteiro a partir da barreira. Belo quadro: Souza Cardoso é que nunca o presenciou senão tinha-as imortalizado...
Por essas alturas chegava também a mulher do correio... (Para aqueles que agora escrevem por correio electrónico, talvez não seja despiciendo esclarecer que antigamente, a seguir à malaposta, as localidades onde não passava a carreira que saía de Castelo Branco eram servidas pela mulher do correio. Andava de noite , à chuva e ao sol, a pé, às vezes com o auxílio de um burrito e era um dó vê-la às vezes, principalmente na altura do Natal, carregadinha até mais não, com as bolsas tapadas por um plástico . O velho argentino, malino como a pata que o pôs, um dia perguntou-lhe: ó zabel, tu não tens medo de andar de noite,sozinha? e ela:"medo de quê? se vier o lobo está cá o burro, se vier um homem, estou cá eu".
Não era raro que a surreição da barreira viesse até à porta da loja do correio mais para ver o que passava do que para ajudar a montar a carga à cabeça da ti Isabel ou nas angarelas do burro. Eu ajudei-a muitas vezes e ti surreição: " o ingrumêncio do fedelho tem genica; tem ganas, o embalde".
O velho comandante é que não gostava nada dela: tinham um terreno pegado, a velha quase não fazia horta e tinha um poço com uma nascente do lado do sol posto que nunca mais acabava de deitar à gua. O comandante só tinha poço e horta e não tinha água. Quis negociar com ela: " ó surreição eu dou-te daqui batatas,feijão e uma botelha das grandes, uns pimentitos e deixas-me enregueirar a água do teu poço". « Não querias mai nada! a água é minha e não preciso dos teus tomates para nada»" Ó filha do diabo, eu é que também não tos dava; estão aqui bem onde estão e são meus". «Malcriadão, não tens vergonha nenhuma». "havias de apanhar a borreira branca e a pieira como as ovelhas, filha do diabo". Como se vê o diálogo era construtivo. A velha chegava a ir, ainda noite escura, a espreitar se o velho lhe tirava algum caldeirinho de água do poço. O velho um dia deu por ela e, então, foi o bom e o bonito.
Foi por essa altura, já em fim de regas, perto das sementeiras de cereal, Outubro quase a acabar, já alguns mais apressados bebiam vinho novo, foi num desses anos que o comandante teve mais um neto. Era já viúvo e aí vem, manhã cedo, que para ele a cama era sempre curta e tapava-se com mantas de acordar cedo, a ver o netinho: "senão fosse por ser gente aventávamo-lo (ele dizia aventavamzo); parece um ratito, é mesmo um ingrumêncio, isto morre." E não se calava: vai-se embora o ingrumêncio, não chega ao chambaril do natal.""É mesmo um ingrumêncio"
Enganou-se e bem: o ingrumêncio cresceu e fez-se um matulão. Também escreve neste blogue. Para ele o maior abraço do mundo, apesar de ser o ingrumêncio.
6 comentários:
êh! "Filhos d'uma cabra mocha"! Estive a "pôr", não "forem" ovos, ser a leitura, em dia. Tenho andado fugido. É do calor. Fico Alentejano. Apesar da minha HomePage ser este Blog. Um abraço. Simplesmente delicioso. E como reconheço quase todos os ambientes, envolvências e personagens, dá-me uma pontinha de saudade juvenil. Ainda por cima conheço os 2 Cromos que escrevem, desde piquinino. Imagino-os a rir com um ar de "sacanice saudável" e gozo. Mas eu ainda me rio mais. BEM HAJA!
O Karraio e o Changoto, deviam ser proibidos de ir de férias. A visão a Sabado os melhores programas da 2, só como exemplo, não tiram férias. Uma piada parva, mas depois da noite, o dia, parece mais Aldeão no seu pior sentido, sem globalização, sem tudo é possivel ( eu escrevo e tudo ), "com vosco despegados" a parte do Mundo onde eu vivo fica maís negra! Voltem depressa, o Mundo onde vivo precisa de vós todos os dias.
Gosto de comida chinesa, a que mais gosto é a comida Italiana, agora SoftWare, nunca provei! Mas "como" só o faço em restaurantes onde sei o que é que a ementa diz, o problema nem são as comidas, são os vinhos, os dois que referi têm de forma geral chapeu, e os vinhos das principais regiões cá do sitio, tu és muito vago, nem sei qual é a especialidade da casa!
A terra onde nasci e cresci...era assim mesmo, quantas vezes desci aquela barreira a correr e ouvia " vai devagar qu' ainda te desmazelas....", ao ler estas histórias a memória vai fazendo longas viagens e a saudade é tanta que até corta a respiração!
Caro Xendro, nesta altura até tenho saudades do "ça va" e dos "Michel tu va tomber! Eu não te disse FDP que caías?!". Estas e as coisas que os NOSSOS ilustres companheiros e amigos (de muitas andanças) vão escrevendo nestas páginas cada vez confirmam mais a minha teoria: vivi uma infância e uma juventude de altíssima qualidade. BEM HAJAM os "2 Cromos" (isto é carinho) que publicam as histórias e todos os que comentam, mantendo a "coisa" bem viva. UM ABRAÇO A TODOS
peço desculpa. o anterior comentário é do ALMADODIABO. Saíu anonymus por lapso
Enviar um comentário