terça-feira, maio 24, 2016

A NOSSA FALADURA - CCXLIII - TRAMPASSO


Começa a ficar cada vez mais raro que a profissão escolhida e exercida por quem quer que seja, se mantenha a mesma por toda a vida. Antigamente era-se alfaiate toda a vida, ou pedreiro, ou albardeiro, ou talhante, ou professor,...Hoje por hoje, esse tipo de estratificação profissional social vai ficando cada vez mais esbatido. Não é por acaso que cada vez mais ouvimos um já quase aforismo:"já nada é como dantes". Na verdade, tenho mais que saudades daqueles serões em que a família se reunia à espera que o jantar (ceia, muitas vezes) fosse despejado da panela de ferro, pela mãe, e para um barranhão de onde todos partilhavam, ora com colher ora com garfo a ementa que era muitas vezes a mesma do dia ou dias anteriores. Comia-se o que a terra dava na altura em que dava. Por exemplo, nesta altura do ano, havia muito pouco que meter na panela: já se acabaram os grelos de couve e nabo, sobram algumas acelgas para o caldo e o resto torna-se complicado conseguir variar. Sobram ainda algumas batatas encarquilhadas, já destaladas no mínimo duas, senão três, vezes, umas cebolinhas já com grelo crescido, um dentinho de alho, uma pinga de azeite e uns feijões ou grãos, alguma carne da salgadeira e viva o velho! Aos domingos ou dia de festa, de vez em quando, lá jurava bandeira um coelho, uma galinha da capoeira, um bocado de carne de quadrúpede ruminante. Mantinha-se o naco do queijo, a tora do toucinho, pão que bastasse, a malga de azeitonas e havia que aguardar pelas novidades que agora ainda germinavam na terra e hão-de redundar numa abundância, sempre contida, lá para o fim do mês, princípios de junho: alface com fartura, algum repolho, cebola nova, batata temporã, ervilha, fava, cereja nalgumas zonas, morangos (poucos) e os viajantes já iam aparecendo com tomate, melão de sequeiro,...  O certo  é que ninguém falava de glufosato e afins: caldeava-se com bordalesa, mondava-se à mão, picava-se e sachava-se, escavachava-se, esborralhava-se, desmamava-se ou desladroava-se... Vai lá vai...Isto sim que era agricultura biológica. Nada do que passa hoje em dia, em que há de tudo o ano inteiro e passamos a vida a consumir produtos cheios de infestantes e muito mais. É caso de dizer como o velho Comandante: "ah! tempo... .
Nem sei mesmo quantos trampassos me aconteceram quando por caminhos velhos, veredas e córregos, às vezes meio ensonado, lá ia eu de sachola ou enxada ao ombro, a caminho do chão e começava logo a sério a esgalhar... Não era preciso aquecimento. Depressa se ficava a suar...
Muita outras tradições, costumes, festas e até hábitos e práticas ainda me deixam marcas e, embora siga Sofia Andresen: "tenho é saudades do futuro"...de vez em quando olho para trás e ainda recupero algumas das vivências daqueles tempos de antanho. Outros trarei noutras alturas se se proporcionar, aqui no basa... Quem sabe lá um dia vos conte o maior trampasso da minha vida quando, montado numa bicicleta empanquei numa corda esticada na estrada porque um cabrito preso a um borrego se lembrou de atravessar para o outro lado da valeta e eu fiquei estatelado na estrada com os dentes partidos a verem-se-me... Quem sabe.
Foi a lembrar-me  de que tudo vai mudando e da "inexorável sucessão do tempo" que fui rebuscar  um outro texto que um dia escrevi a propósito de um dos mais candentes temas da actualidade. Trata-se dos novos deuses. Se é verdade que as velhas religiões se mantêm e algumas até estão em expansão, não é menos verdade que surgem, a cada hora, novas formas de religiosidade que assentando, na sua maioria, nos princípios e mitos das religiões tradicionais, propõem novas formas de relacionamento com as divindades e não há dúvida que elas vão atraindo fiéis.
Deixo-vos o texto que vale pelo que vale... Se me quiserdes deixar eco, sabeis como fazê-lo.


O SER, O TER E OS NOVOS DEUSES


SE EU PUDESSE NÃO TER O SER QUE TENHO
SERIA FELIZ AQUI…
QUE GRANDE SONHO
SER QUEM NÃO SABE QUEM É E SORRI!

MAS EU ME ESTRANHO
SE EM SONHO ME VI…
TAL QUAL NO TAMANHO
O QUE NUNCA VI…

Fernando Pessoa  18/6/1930


SER
TER
1- ESSÊNCIA – (AQUILO QUE O HOMEM É  INDEPENDENTEMENTE DAQUILO A QUE POSSA  ADERIR)
1 - EXISTÊNCIA  ( A REALIDADE É ONDE O HOMEM ORGANIZA A SUA VIDA)

2 – INTERESSA-SE PELA VIDA ÍNTIMA DO HOMEM (AQUILO QUE LHE É SUBSTANTIVO)
2 – INTERESSA-SE PELO HOMEM ACTIVO /PROFISSIONAL E SOCIALMENTE (VAI DO PAPEL AO ESTATUTO)

3- PERGUNTA FUNDAMENTAL: QUAL O MEU MODO DE VIDA?
3 – PERGUNTA FUNDAMENTAL: QUAL DEVE SER O MEU MODO DE VIDA?

4 – O IMPORTANTE É FORMAR PERSONALIDADES
4 – O IMPORTANTE É FORMAR O HOMEM PARA A VIDA

5 – ALGUNS EXEMPLOS HISTÓRICOS:
5 – ALGUNS EXEMPLOS HISTÓRICOS :

A – SÓCRATES
A – PLATÃO
   LIBERDADE
TAREFAS OBJECTIVAS DO HOMEM
   INDEPENDÊNCIA
BUSCA DO MUNDO PERFEITO
   COERÊNCIA


B - CRISTO
B - RENASCIMETO
 DAR A VIDA PELO OUTRO
ÊXITOS PESSOAIS / MATERIAIS / SOCIAIS

C – COMENIUS
C – POSITIVISMO
 FORMAÇÃO DO HOMEM TOTAL
O QUE NÃO FOR DEMONSTRÁVEL NÃO TEM VALOR CIENTÍFICO.

D – ROUSSEAU
D – BEHAVIORISMO
A CRIANÇA É DE SUA ESSÊNCIA BOA, A SOCIEDADE É QUE A PERVERTE
O SUCESSO DO INDIVÍDUO ACARRETA O SUCESSO DA SOCIEDADE

E – PSICANÁLISE
E – MAQUIAVEL
EQUILÍBRIO INTERIOR
 VISA A RENTABILIDADE/SUCESSO MESMO QUE A CUSTO
MATURIDADE SENTIMENTAL

QUALIDADE DE EXISTÊNCIA INDIVIDUAL


F- O DECISIVO É QUE O HOMEM SEJA ALGUÉM.
F – O DECISIVO É O QUE O HOMEM FAZ.

G - O HOMEM É UM SER VIVO PARA SER FORMADO HARMONIOSAMENTE
G – O ALUNO /HOMEM É UM SER MOLDÁVEL

H – SATISFAZ AS APETÊNCIAS INDIVIDUAIS
H – O QUE DEVE SATISFAZER SÃO AS NECESSIDADES UTILITÁRIAS DA SOCIEDADE

I – PROCURA A REALIZAÇÃO PLENA  DO INDIVÍDUO QUE SENTIRÁ PRAZER NO FAZER BEM E COM AMOR.
I – VISA DOTAR A SOCIEDADE DE INDIVÍ  -DUOS COMPETENTES E ALTAMENTE QUALI -FICADOS

J – ENSINA A VIVER BEM CONNOSCO PRÓPRIOS MAS NEM SEMPRE FORNECE OS EQUIPAMENTOS NECESSÁRIOS
J - FORNECE CONHECIMENTOS MAS NÃO OS BONS MODOS DE UMA SÃ CONVIVÊNCIA SOCIAL.

L – O HOMEM VALE PELO QUE É E NÃO PELO QUE TEM.
L – O HOMEM VALE POR AQUILO QUE POSSUI.

M – O RESULTADO SERÁ UM HOMEM DESINTERESSADO E COMUNITÁRIO
M – O RESULTADO É UM HOMEM UNIDIMENSIONAL QUE SE FICA PELO LUCRO E PELO PODER.


"Ser" é humanidade, consciência social, livre arbítrio, liberdade, igualdade, fraternidade, solidariedade, cultura, preocupação ambiental, ecumenismo, tolerância, aceitação e preocupação com o outro...


 "Ter" é ilusão, é pura aparência, é efemeridade, é indiferença, é intolerância, é enfermidade, é solidão. O "ter" não tem esperança porque se esgota nele próprio, alimenta-se dele próprio exigindo sempre mais "ter"!

Que saída para essa quadratura do círculo, para esse não senso que alguns tentam erguer em novo paradigma, querendo fazer-nos crer que é a única via para a resolução dos problemas da humanidade?

Com Erich Fromm, vemo-nos na contingência de chegar à dolorosa conclusão de que na sociedade contemporânea prevalecem valores (cada vez mais associados ao ´ter´) como o crescente desejo de posse de bens materiais, o consumismo e a sede de poder, o que coloca a humanidade no abissal caminho da destruição social, psicológica e ambiental o que mais agravará, inevitavelmente as desigualdades sociais.

Só o desvio dessa rota mortal, poderá posicionar o indivíduo no sentido construtivo do amor, da partilha e da actividade produtiva (valores associados ao ´ser´). Não é fácil, espera-nos muita frustração (tanto maior quanto menos "ser" houver...) e alguma satisfação, sobretudo aquela de sabermos que, no mais íntimo do nosso ser, estamos no caminho certo, na única via para a criação da Paz e da Harmonia entre os seres humanos.

A grande diferença  entre o “Ser” e “Ter”  é  que se estabelece uma sociedade centrada sobre as pessoas e não uma sociedade centrada sobre as coisas


OS NOVOS DEUSES

. Em termos de valoração a cultura ocidental é matriciada (entre outras influências) pelas culturas helena – judaica – romana – cristã - islamita. Vive-se um novo paganismo que mais não é que o renascer transfigurado de uma deificação de personalidades transcendentes clássicas (vg. Deuses).

. O próprio cristianismo é, no seu todo, a convergência resultante das influências gregas e judaicas, para além de outras anteriores, menos conhecidas, como sejam a mitologia egípcia e os apotegmas dos sábios da antiguidade e mesmo do Pitagorismo de Samos.

. Se até ao Sec. XVIII/XIX não se conhecem grandes obstáculos ao cristianismo e à tese do CRIACIONISMO, a partir de DARWIN, LAMARCK,… essa tese começa a ser contestada e, com o apoio das novidades científicas assentes, por vezes também, num POSITIVISMO DESENFREADO, emerge a nova coqueluche do mundo do saber – O EVOLUCIONISMO.

. Esta nova leitura do aparecimento do homem, que claramente desmonta a defesa de que Deus teria criado o homem à sua imagem e semelhança, arrasta a humanidade para uma nova perspectiva valorativa da existência.

. Abandona-se ou, pelo menos resfria-se o dogmatismo cego que, sem discutir, aceitava o que lhe era imposto pelos líderes religiosos e aventa-se uma nova hipótese que os tempos vieram demonstrar como credível.

. Em consequência, novos valores surgem e aos poucos vão ganhando terreno substituindo a religiosidade do senso comum pela crença bem justificada de valores materiais que desmontam do pedestal a mitofilia tradicional.

. Não mais a preocupação com a divindade, o pecado, a culpa, a ameaça do Além, o espírito de sacrifício, a subalternização à hierarquia, ao sofre e abstém-te; e em vez disso o consumismo desenfreado, apego ao bem estar terreno, ao prazer sensorial, ao gozo pleno.

. Se nos cingirmos apenas ao mundo europeu – o nosso – o que se passa é que dos anos sessenta para cá e, em definitivo, a partir da queda do mundo de Berlim, a Europa se alarga e se estende até à proibida Rússia e desconhecida Ucrânia.

. Com o advento e aperfeiçoamento diário das novas tecnologias deixa de haver fronteiras espaciais e passa a haver tão só fronteiras temporais, já nada é privado e tudo é publicitado. É a uniformização do vestuário, da música e de tudo o mais, superam e aniquilam, esvaziando-os, os ancestrais valores cristãos: é o nihilismo emergente.

. Os novos valores que deixam vazio o espaço ocupado pelos valores tradicionais, a começar por deus e por aí fora, conduzem a uma nova forma de paganismo e à INVENÇÃO DE NOVOS DEUSES.

. Estes novos deuses têm nova valoração, e proporcionam uma nova visão da realidade que se resolve em novas mentalidades. Há novos deuses com novos nomes, mas a fuga ao sagrado imposto conduz inexoravelmente a nova forma de paganismo.

. Assim, o primeiro deus do novo paganismo é o PODER, ressurreição do mais que antigo deus BAAL, materializado na posse do dinheiro. É a superioridade do TER e a descida de pedestal do SER.

. Os seus templos são as instituições financeiras e os sacerdotes são os corretores, os gestores financeiros, os economistas, os executivos.

. Em paralelo surge o deus SEXO e tudo o que à sua volta gira. É a ISHTAR da antiguidade. Já não se trata da fertilidade e da sua protecção, mas de toda a envolvência que entorna o poderoso negócio do sexo. Os templos estão por todo o lado - revistas, media, cinema, publicidade,… e os seus fiéis seguidores superabundam a cada esquina.

. Outro deus contemporâneo é a transfiguração de Calíope. A deusa da fama e da glória, dos feitos heroicos e grandiosos, A celebridade, e toda a iconografia do efémero transformado em produto de consumo avassalador.

Na maioria dos casos as pessoas conhecem estas celebridades, mas não sabem quem são e menos ainda o que fizeram para ser célebres. O grande templo, o Vaticano ou a Meca desta deusa é a TELEVISÃO. Todos para lá se viram e regem a sua vida em função da sua programação.

E o telemóvel? Gravitamos continuamente em torno dele …Podemos esquecer-nos das chaves de casa, dos óculos e até da carteira…mas do telemóvel? Desse nunca. A memória perdeu valor. Guardamos tudo no artefacto e é ele que nos desperta, nos lembra da agenda, nos põe em comunicação, nos ajuda a passar o tempo, nos informa acerca do tempo. Estamos, sem dúvida, na sua dependência e evidencia-se a sua cada vez maior importância…

Há mais novos deuses, mas para amostra ficam estes.

Deixo-vos a questão: será este paganismo melhor do que o anterior à missionação heleno/romana/judaica/cristã/islamita?
A resposta cabe-vos a vós.

Nota: não é preciso ficardes de cara à banda ou de queixo caído como se vos tivesse acontecido um trampasso como o meu da bicicleta abaixo.


XXXXXXXXXXIIIGGRANDDDDEE!


5 comentários:

pratitamem disse...

Os novos deuses, são apenas nova forma, de surgimento, da repetição se quisermos, de um novo monoteísmo! digo eu. A tecnologia de ponta em estado desenfreado com contaminação sem antidoto, em neocapitalismo absoluto ou "radical", digo eu! Será porventura o grande deus, que se segue. Assim interpreto as letras do grande poeta e pensador Changoto, cujo pensamento, utilizo faz muitos anos, como tempero natural, para as minhas, julgo, melhores receitas de entendimento esclarecido! Como um bom azeite, ou melhor vinho, são coisas criadas da criteriosa paciência, experiencia e filosofia de vida, atiradas assim para estas aguas o Baságueda, que só bebe quemtem sede de agua pura! Vale esta conversa toda, para sublinhar o mérito mais uma vez de quem escreve desta forma desensombrada, com o justo sentimento do dever cumprido, neste mundo em vertiginosa colisão, é desta forma digo eu! que fazem sentido os alertas...

Zé Rainho disse...

Como sempre um texto fabuloso. Um conteúdo de respeito, profundo, para reflectir.
À margem do assunto queria perguntar se a peregrinação a Santiago de Compostela correu bem?
Grande abraço e, mais uma vez, parabéns.

pratitamem disse...

Reflecte, em segundo tempo, essa coisa, da vida profissionaL. Impedimento sublime, de quase TUDO! Diz o sábio, ..." Começa a ficar cada vez mais raro que a profissão escolhida e exercida por quem quer que seja, se mantenha a mesma por toda a vida. Antigamente era-se alfaiate toda a vida, ou pedreiro, ou albardeiro, ou talhante, ou professor,...Hoje por hoje, esse tipo de estratificação profissional social vai ficando cada vez mais esbatido. Não é por acaso que cada vez mais ouvimos um já quase aforismo:"já nada é como dantes. ..." Na verdade, sofre quem sabe! A minha opção profissional, composta nesse tempo da famosa liberdade, retirou-me, alguns dos direitos mais fundamentais! (eleger e ser eleito) só posso eleger, e ainda assim, em silencio, sem manifesto publico, dessa razão de escolha! Não posso ter mostra de apreço, nem por partido, menos ainda por quem julgo merecer tal cargo. Menos ainda ter uma opção clara por uma vontade construída, um partido que eu queira tomar. Longe, nem pensar, a possibilidade de ser candidato a uma escolha popular, para a mais simples da organização administrativa. Zero em todos os aspectos! É essa a herança do 25 de Abril, maravilhoso, que se manteve e reforçou! Eu nasci na politica, na vida do meu pai e irmãos mais velhos, nela morri por via, da defesa publica do meu país! Aos 18 anos tomei com coragem uma opção politica, 3 anos depois tive que sair, pra ir pra tropa (serviço militar obrigatório) depois o resto já não interessa, mas é, não sou só eu que digo, aberrante! Deve servir para qualquer coisa, para qualquer valor maior, serve porventura, pra trocar,em vez de se cantar o hino, canta-se aquela, mística mensagem, em seus rituais contextos... Mas porra disso eu não percebo nada, e cortava tudo mormente sorrisos, pra "alvariar" tal moda! Sou na verdade um capado desta maravilhosa sociedade! tudo o resto é treta, muita treta, que por ai anda, bailando tipo exemplo para o mundo!..... PORRA!

pratitamem disse...

És, essa mensagem também amigo Changoto, essa voz forte e solta que outros que já vão, gostavam de ler como lei! Mas a "soltura" faz-nos, também sentar muitas vezes. Na parte que me toca, gosto de pensaR sentado...

pratitamem disse...

Epá! Podias ter sido Sr. Carpinteiro ou Electricista,(Esta última, palavra difícil de escrever a esta hora! ainda bem que há correcção), ou at'e jornalista de um partido qualquer! Mas resolveste ser xêndrico! E agora, tás a ver! És feliz! TÀ BEM!