Nosso Fernando era, e ainda é, o mais velho dos Pombos. É daqueles que, com uma simples navalha, mata um porco de oito arrobas ou mais com uma única espetadela. Enterra a navalha uma vez, tira-a, limpa-a e poisa-a. Enquanto os outros seguram o porco e um mexe o sangue no alguidar com uma mão cheia de sal grosso, Fernando vai-se à mesa, corta um naco de queijo fresco, arrefinfa-lhe um branquinho e apenas limpa o focinho na chamusca, faz o cu e o pindrico se for macho, abre os nervos para o chambaril e torna a esperar que pendurem o porco para se dedicar a abri-lo. Rasga dois sulcos ao lado das tetas do animal, separa o soventre de baixo para cima num jeito certeiro, aventa a tira para trás e começa a abrir as laterais com uma eficácia que é de admirar em quem nunca foi cortador diplomado. Tão habilidoso é à direita como à esquerda. Aprecia a carne do animal decretando se tem boa febra ou se é só gordura, pede o tabuleiro para apararem as tripas, detém-se no osso da suã, abre-o nos dois sentidos puxa as tripas, tira o fel do fígado, vem até à língua, fazendo a gola de caminho e separa a fressura que pendura num prego da trave mestra da loja. Enquanto alguns vão a separar as tripas, nosso Fernando, pede uma malga e começa a cortar nas melorejas que eu logo me apresso a migar porque a bucha não pode tardar. Nosso Fernando vai-se até ao lume e aguarda que a fritada da meloreja vá para a mesa, roendo umas azeitonas retalhadas e mandando uma bocas aos das tripas: « sandens mesmo uns bazarocos, já arrebentásteis a tripa em cinco lados. Eu tinha vergonha...E tu oh nalga roxa, num vês que isso que estás a separar é a madre?! Isso num presta para levar enchido! És mesmo um bazaroco! já tiveste tempo de aprender. num sei pra que raio andandens a estudar se num distinguis a madre, da tripa dum animal. O que tu merecias era que ela estivesse saída e logo vias aí o sangue da lua...Palavra de honra!» Dou-lhe a meloreja a provar e salta logo: sal, precisa de sal. De pouca adiantava que eu lhe explicasse que o sal só fazia mal à saúde e que ele não gostava de meloreja mas de salgadeira. Lá o consolava com mais um branquinho e logo mandava a sentença: olha que a meloreja num quer branco. Casca-lhe mas é com uns tintos valentes na caçola».
Na minha casa paterna, matança não metia saia. As mulheres só apareciam mais tarde e competia-lhes fazer a viragem das tripas que os homens já tinham limpo e a respectiva adoba em laranja, alho, loureiro, sal e mais o que entendessem necessário para depois encherem o belo chouriço, bexiga, palaio...
Naquela matança, os homens estavam entretidos com as tripas e eu fiquei sozinho com ele e provoquei-o. Diga-se, antes de mais que nosso Fernando gabava-se de saber de tudo. Na verdade, ele era tosquiador, pedreiro, pintor, barbeiro, hortelão, meio sapateiro, limpador, podador e qualquer outra tarefa que lhe fosse cometida, era certo e sabido que nosso Fernando nunca se negava e desafiava quem fizesse melhor que ele
Começo eu: «Oh ti Fernando, já reparou que as mulheres não nascem mulheres?» E ele:" Então nascem homens, é?" « Não, elas nascem é com potencialidades para se tornarem mulheres; quando nascem ainda não são mulheres,» " lá isso pode ser verdade que eu à minha filha sempre lhe chamei de garota. Até agora, que já me deu dois netos quando falo para a minha, pergunto sempre pela nossa garota" Ora vê! Mulheres só são as do seu tempo que já se casaram, e, se bem calha, ainda lhes chama de cachopas quando passa por elas" Eu ia controlando a meloreja na caçola e ele apreciando e metendo veneno nos separadores de tripa, mas nunca esquecendo a conversa. Vem-se a mim e remata: « mas, porra, um garoto num é igual a uma garota! ele nasce com uma pindrica e ela com uma greta!» "Ora aí tem: não nascem mulheres, hão-de tornar-se mulheres"» Até aí tens tu razão, só chegam a mulheres quando se casam!» "não é bem assim" e começo a fazer uma oração de sapiência sobre a diferença entre natureza e cultura, a consideração que as mulheres têm nas diferentes culturas, religiões, povos... no seu papel social, na importância que sempre desempenharam na civilização... " «Vê lá num deixes esturrar a meloreja!
Percebi que a conversa estava desajustada e arranco-lhe com uma história sobre o significado do peido. Aí ele presta logo atenção. "Uma vez no combóio, no tempo em que ainda era tocado a vapor e o fogareiro ia alimentando a caldeira com hulha, na mesma carruagem e, num banco de frente uns para os outros, iam , um advogado, um médico e um agricultor. Não havia motivo de conversa e o lavrador, de repente, solta um sonoro. Diz o advogado: o peido é uma justa reivindicação do cu relativamente à boca; e o médico: o peido é uma consequência natural dos gases libertados por alguns alimentos que o organismo se vê na necessidade de expulsar. Digamos que é um arroto nos antípodas. O agricultor que encolhia mais uns quantos que lhe apetecia soltar, ia calado, até que lhe pergunta o médico: então e para si o que é o peido?
Nosso Fernando solta uma gargalhada e e depois de se ter certificado de que a meloreja estava no ponto: Oh corja de bazarocos, intão isso inda num está aviado?! Inté cagava um pé todo! se eu metesse as mãos a isso, já faz tempo que lhe estávamos a arrefinfar ! Nosso Zéi, irmão de Fernando, que também sabia da folha ainda lhe respondeu: O que tu sabes já a mim me esqueceu. Vai masé enchendo os copos que nós já aí vamos. Abriste pouco a cabeça do porco e se eu lá não tivesse ido a cortar mais meloreja ficavas só a molhar pão no molho. Fernando sentiu o toque :«quando tu nasceste já eu comia pão com côdea, meu bazaroco!
Tudo se compôs e a plangana da meloreja depressa ficou aviada porque não adiantava guardar para as mulheres, que, se a comessem podiam quebrar a madre e nunca mais poderiam ser mães... Crenças que justificavam que os homens comessem o que era bom e as mulheres apenas assistissem, salvo as avós já em idade de não poderem voltar a ser mães, porque a essas já não fazia falta a tripa madre. Outros tempos!
XXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGRRRRRRRRRRAAAAANNNNDEEE
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