terça-feira, abril 30, 2013

A NOSSA FALADURA - CXCVI - MATRAFUSCA

Disse ou tenho dito, diz-se quando já se disse o que se tinha para dizer... Ora, como eu ainda não vos disse o que pretendo dizer-vos não posso dizer que já disse ou tenho dito... A verdade porém é que já o disse mas não deveria tê-lo dito... Antes devia dizer-vos o que tenho para vos dizer, mas como também ainda não disse o que direi, digo que aquilo que vou dizer é o que deve ser dito para dizer o que trago para vos dizer. Vou então dizer o que direi, mas muito do que vos vou dizer já foi dito por outros que me disseram o que agora vos vou poder dizer. Dir-vos-ei, então, o que ouvi dizer e, no final, já poderei dizer, como se diz quando já se disse o que se tinha para dizer, ou seja, já poderei dizer, disse ou tenho dito, tal como deve ser dito.
Zé Aranhiço foi, sem dúvida, o maior contrabandista dos xendros. Homem seco, de estatura meã, sempre de cara arroxeada, ficando por saber se tal cor era devida ao frio que apanhou, em jovem, na trasfega dos carregos, se causada pela quantidade de vinho que ingeria. Nunca o vi beber outra bebida. À pergunta se não bebia água, invariavelmente respondia que era suficiente a que a mulher punha na sopa, que, aliás, poucas vezes comia. Era mais adepto de comida de seco e de petiscos que de qualquer tipo de caldo. Voz de cana rachada, mesmo não fumando, dentes cerrados, rijos como poucos, já que o vi várias vezes tirar as caricas das garrafas com uma facilidade espantosa. Rijo como poucos, tirando na estatura, fazia lembrar o grande Aníbal Barca, general Cartaginês, que, no retrato de Tito Lívio, nos surge como um homem austero, resistente de igual modo ao frio e ao calor, capaz de passar noites e dias seguidos sem comer, beber ou mesmo dormir. E isso aconteceu-lhe várias vezes, chegando ao extremo de passar uma noite invernosa agarrado a um salgueiro, quase imerso na corrente da ribeira da Baságueda, o carrego posto a seco num galho, depois de uma fuga às balas da Guarda Fiscal que o queria prender. Utilizava com os seus homens um dialecto ininteligível a quem escutava, mesmo aos intrusos pagos pelo Chico Sarapião, regedor, e pasme-se, irmão do próprio Zé Aranhiço. Combinava na tasca do Chico, do Fatela, do Zé Júlio, do Zé Rolo, ou do Zé Cavalheiro. Só eles entendiam o que deviam fazer e era tarefa vã tentar descobrir aquela enigmática linguagem. Depois dos recados dados pagava uma rodada e desandava, deixando quem não pertencia aos seus de cara à banda. Quando o conheci usava gorra espanhola de marca Canizares, mas, depois, habituou-se ao uso de chapéu. Famosa ficou aquela vez em que ele, fugindo a carabineros e guarda fiscal deixou cair o chapéu que posteriormente a Guarda Fiscal encontrou e apanhou. No domingo seguinte, depois de missa, Chico Grande, cabo da Guarda Fiscal, dirige-se a Zé Aranhiço: «oh tZéi, quando quiser, passe lá pela esquadra que está lá o seu chapéu. » Aranhiço percebeu logo a matrafusca e responde:« O meu chapéu está aqui na cabeça... Eu não perdi nenhum chapéu. Posteriormente dizia: «o que eles queriam era que eu lá fosse e assim ficavam a saber que era eu e engavetavam-me...»
Das artimanhas que Aranhiço utilizava nem vos conto, mas o facto é que tinha freguesia bastante para ocupar quase permanentemente sete homens no vai-vem entre as duas fronteiras. Vendia de tudo: alpergatas, meias, pana, rebuçados, gorras, chocolates, ceregumil, bolachas, até mesmo guilhos, rastos, bicos de charrua, serrotes e foições. Nunca o apanharam e isso era a sua coroa de glória.
Conhecia todos os caminhos e veredas da raia, todos os lavradores e pastores e até os cães para que não o denunciassem à passagem e assim a guarda fiscal o pudesse localizar. Tinha um sem número de esconderijos e era interessante quando despachava alguma mercadoria pelos meios de transporte públicos. Metia tudo em cestos mas tapava-os com hortaliça e assim disfarçava o produto. Lembro-me de uma vez um cão alçar a perna para se aliviar num desses cestos e Aranhiço:« marcha daí, cabrão, num vês que me estragas a hortaliça»
Agora sim: já posso dizer que disse ou tenho dito porque ja disse o que tinha para vos dizer. Disse.

XXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGRRRRRRRRRRAAAAAAAAAAANNNNDDDDDDEEEEEEEEE

1 comentário:

Pratitamem disse...

Bela faladura Amigo Changoto! Se ainda houve-se Guarda Fiscal e eu fosse Comandante, dizia era ao senhor da troika, para ir buscar o chapeu ao posto!