domingo, outubro 21, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXXVI - BOLÉU

O sagrado e o profano andaram sempre a par. O homem e o universo sempre se opuseram, no sentido de que, o primeiro, desde tempos imemoriais, tenta descortinar os segredos do segundo. É nesta oposição que o conhecimento se reparte em sujeito (aquele que quer conhecer) e o objecto (aquele que pode vir a ser conhecido). Não é do campo do basa deter-se agora nas diferentes doutrinas que, ora atribuem predominância a um, ora ao outro. Ainda assim, a incompetência ou incapacidade do sujeito para conter na sua rede de conhecimentos todos os insondáveis segredos do segundo, conduziu a que ele - que não gosta nada de perder - se desculpabilizasse, atribuindo a responsabilidade do que não entende a um ou muitos seres cuja antropomorfização é evidente, mas com características que extravasam das capacidades do ser humano. As divindades surgiram assim: da necessidade que o homem sentiu de a elas recorrer para se sentir minimamente seguro no enorme mundo do ignoto. O mais curioso é que, tendo sido ele o inventor desses seres, depois, não só se submete a eles, como, o que é pior, os usa para submeter outros. Na verdade, em nome dos deuses, sejam eles quais forem, cometem-se as maiores das atrocidades, desde os autos de fé às jhiads, às imolações de virgens,enfim, que sei eu... É por isso que, sabiamente, Eliade diz que o profano tenta dominar o sagrado ao mesmo tempo que foge dele, para não ser completamente subjugado por esse mesmo sagrado. Aqueles que a si mesmos, com mais ou menos demagogia, se auto proclamam enviados e/ou representantes terrenos desses seres sobrenaturais, cedo se aperceberam das vantagens e do poder que lhes era e é conferido e/ou atribuído, pelo que jamais querem perder essa vantagem estatutária. A História é tão fértil em exemplos  que me dispenso de citar algum.
Esses "eleitos do Senhor" aperceberam-se também de que o exagero de "tirania" que exerciam sobre o povo, poderia virar-se contra eles próprios e, habilmente, criaram épocas festivas, aproveitando mesmo as datas profanas, ditas pagãs (vá lá saber-se porquê), para que o povo ( leia-se fiéis) pudesse descarregar a sua energia, sempre contida por mandamentos ou normas de moral, impostas em imperativo negativo, e, assim, louvassem o Senhor e seus "legítimos" representantes pela sua infinita bondade. As festas anuais surgem assim e o cariz religioso - sagrado, portanto - encaixa nas antigas festas do profano que ocorriam em função do ano agrícola. O povo precisa de festas, demos-lhe então algumas, mas controladas por nós, assim pensavam e pensam os SACERS.
Era costume, nos meus tempos de meninice, que, de vez em quando, passassem pela aldeia xêndrica os comediantes. Vulgarmente numa carroça ou, já mais tarde, numa carrinha ou camioneta a cair de velha, estes comediantes eram uma família de três gerações, anunciavam-se percorrendo as ruas da aldeia com uma tarola bem batida,  a canalha atrás, sempre curiosa e ávida de novidades, anunciando que à noite no largo em frente da Igreja, teria lugar uma sessão de espectáculo circense, com palhaço, ilusionista, pantomineiro, trapezista e acrobacias várias, em que o povo seria também participante activo.
A rapaziada assistia ao montar do trapézio sem rede, os velhos davam opinião sobre a segurança dos ferros, em função do esticanço das cordas e da altura do trapézio e a canalha rodeava os artistas, sempre solícita, colaborando, indo buscar a marreta, a espia, água ou o que lhes fosse pedido.
À noite, depois de ceia, lá vinha o povoléu ver as comédias. Fazia-se naturalmente um círculo que servia de arena, onde os artistas, anunciados com um funil adaptado para amplificação de som, exibiam as suas habilidades. Em regra, culminava com o /a trapezista, que fazia o Cristo numas piruetas com ambas as mãos ou só com uma, subia e descia da corda, volteava sobre o eixo do trapézio e foi aí que, inesperadamente , nessa noite, a trapezista caiu um boléu de todo o tamanho. Todos se precipitaram para ajudar, mas, felizmente, aos poucos, a rapariga, lá se começou a mexer e a andar pelo próprio pé, bebeu água, ainda quis voltar ao trapézio, mas o patriarca dos comediantes não deixou. Pediu desculpa e passou com um chapéu por toda a roda agradecendo uns tostões.
O espectáculo acabou com uma salva de palma e o regresso a casa comentando a sessão e apreciando a habilidade da rapariga não só no trapézio, como na rapidez com que rodou o corpo para não cair de chapa na calçada, evitando que se escavacasse toda com o boléu que apanhou.

XXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGRRRRAANNNNNNNNNNNNNNNDDDDDDDEEEEEEEE

3 comentários:

pratitamem disse...

Mais um belo testo ao gabarito do autor. O pra mim magnifico Changoto!
Mas eu fui aumentado enquanto a rapariga caía do trapézio em 2009, ao mesmo tempo que comprei mais coisas de que necessito, porque o IVA tinha descido. Mas na verdade tudo tem uma época, enquanto rende faz sentido e é engraçado, quando o mundo acorda, nada faz sentido! Paga-se agora o riso, ficamos sérios, a brincadeira não presta e então caimos de chapa como muito bem retrataste. Cá por mim acho como já te li. Que tudo vai melhorar. Um abraço de quem acredita em vós e neste Blog, desde que nasceu! sem espinhas, porque eu não sou peixe. Sou Virgem!

pratitamem disse...

É verdade que o tema deste post, é a palavra boléu e é verdade também, que não faço ideia do que quer dizer nem vou procurar saber a esta hora. Apenas sei que o meu Amigo Changoto é um maravilhoso contador de estórias e ninguem as sabe contar tão bem como ele. Essa é que é essa. ABRRAAAço grande!

Idanhense sonhadora disse...

Um belo texto , uma belíssima análise tendo por base da História do paganismo e sua cristianização.
Ab.