Se havia cozinheira de boda afamada em toda a Raia, a Ti Maria Rainha levava a palma. Mulher cheia, de barruma na testa, braços mais que compridos, mãos lhanas e enormes, sapato para aí nº 40, tudo para mais, voz tonitroante, andar calmo, mas constante. Nunca se cansava e era capaz de trabalhar três dias e três noites sem ir à cama. Não sabia ler nem escrever e nunca precisou de contar ou pesar o que quer que fosse de ingrediente. Dizia que os ovos não eram todos iguais e que a proporção nunca era a mesma, porque era diferente se fosse de compra ou fosse de capoeira, se era de galinha pedrez ou castanha ou preta, pelada ou não, com galo ou solteira, sei lá! Muitas vezes lhe pedi receitas de iguarias ímpares e a resposta era sempre a mesma: " tu num vês que eu faço tudo a olho!?. E era mesmo. Até a têmpera do forno era medida metendo o braço na porta e dando indicações: "mete lenha de azinho", "mete esteva", "tira borralho", "passa o vassouro". Ela lá sabia. O facto é que caçola, bolo ou assadura saíam sempre na perfeição. Nem relógio usava, mas ela lá sabia quando virar, pôr à porta, afundar, tapar borralho, tudo.
Não usava artefactos de cozinha, salvo faca quando necessária.
Onde mais eu gostava de a ver trabalhar era na confecção dos bolos: sentava num tropesso de cortiça diante de um alguidar enorme, arremangava as mangas, lavava as mãos e queria uma pessoa a seu mando ali perto e todos os ingredientes que ela colocava à mão.
« Escarcha praqui ovos, bota mais, bota, bota», e o braço tocava a mão que ia batendo os ovos; quando via que já chegavam: bonda!, bota agora farinha, bota, bota, bonda! Agora bota açucre, bota, bota, bota, bonda! O braço esse andava sempre num vai-vem semelhante aos dos alcatruzes de uma nora ... De vez em quando os dedos procuravam algum cogulho, esborrachava e voltava ao mesmo movimento. «Vai-me por um cochito de biquebornato e desmancha-mo aí num chá de cidreira, mexe-te!» E a mesma lenga- lenga: "bota, bota, bota, bonda!".
Com a mão livre metia um dedo na massa, provava e logo: bota mai açucre, mai um pacote de farinha e traz-me agurdente: bota, bota, bonda! Sempre assim foi, e ainda nunca provei nem bolos de leite, nem esquecidos, nem borrachões, nem biscoitos, nem arroz doce, nem bolo de noz ou amêndoa, pão de ló ou chocolate como aquele braço e mão faziam...
Fazia panelões de caldo, tudo a olho e no pino do Verão, quando as couves têm menos viço e são ásperas, lá vinha ela com o biquinho da faca transportando o indispensável biquebornato, as couves ganhavam um verde intenso e ficavam macias que era um regalo.
As bodas eram refeições monumentais: as famílias dele e dela começavam separadas e por volta das 10 lá se começava o enchimento com pastéís de toda a ordem, panados, bolos secos, branco e tinto com fartura e sumos para a canalha e para as mulheres. Ele chegava primeiro à porta da igreja e esperava que ela aparecesse. Só aqui é que ele podia ver o vestido dela. O pai entregava-a à madrinha e lá subiam a coxia e ficavam lado a lado. Recebiam-se, o oficiante dava as bençãos e saíam já casados. O almoço dos noivos era na casa dela e o jantar na casa dele. Os convidados duma e do outro iam para espaços separados. Só muito mais tarde é que se começaram a fundir os adjuntos.
As mesas já estavam compostas com mais bolos e com os frios assados avícolas: galos e perus.
Havia sempre duas sopas, uma das quais invariavelmente era canja e a outra variava entre o grão com massa e couve grossa, caldo verde, feijão grande com nabo. O prato de peixe era na maioria da vezes, bacalhau à Brás e depois vinham as carnes: arroz de sarrabulho, coelho com esparregado, galo de cabidela, borrego ou cabra guizados, carne de caçola, bifes de porco com batata frita, muita alface, e ao fim um número interminável de sobremesas, desde bolos a pudins e até, nas bodas mais finas, gelado que mais parecia um creme.
Havia gente que comia o prato cheio de todas as variedades. Duma vez vi comer catorze pratos diferentes a um Labouxa.
A situação mais aberrante, no entanto, aconteceu com o Balecas que me diz: « Se não fosse cá por coisas agarrava-me a este galo e vindimava-o. ! » E vindimou. Comeu o galo inteirinho com duas travessas de esparregado.
Durante a tarde havia bailarico, tá claro e à noite tornava-se a encher a blusa. Havia gente cujo estômago não devia ter fundo, tal a quantidade que ingeriam.
Os noivos na manhã seguinte tinham direito a pequeno almoço servido com todos os requintes.
Não raras vezes, ele pedia um pouco de biquebornato por mor da azia!
XXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGRRRRRRRAAAAAAAANNNNNNNNNDDEEE
4 comentários:
Pensava eu que era também usual, pelo menos lá pela terra dos Xendros, o noivo acompanhado dos respetivos convidados irem buscar a noiva a casa e seguirem para a igreja, ele à frente, ela atrás. Foi assim no meu casamento, e fui convidada para alguns outros em que o mesmo aconteceu.
nnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnno meu eu fui á frente, pra ver a sorte que me calhava! Eu merecia e a sorte calhou-me quase toda. Na verdade faltou-me essa sorte, dessa senhora maravilhosa que o vitor tão sabiamente descreve, que na verdade tive a sorte de saboriar no casamento do meu mano mais velho. Viva a Aldeia do Bispo, viva este espaço maravilhoso.
Tem razão "Anónimo " , na minha terra , Idanha-a-Nova , era tal qual como descreve ...Lembro-me bem desse ritual...
Agora vão todos de carro e encontram-se à porta de Igreja. No final da cerimónia, após duas horas de fotografias e para desespero dos convidados esfomeados, seguem todos invariavelmente outra vez de carro, para o repasto num sítio a quilómetros de distância. Isto quando há casamentos, que afinal também escasseiam. Já não me lembro da última vez em que cumpri o ritual de ir "ver a noiva" à saída da igreja. Aí se juntava o povo todo, no adro à porta do Café da Ti Rosa, a apreciar os noivos e convidados.
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