O fator crítico para o sucesso do ser humano parece estar na sua capacidade criativa. Inadaptado ao meio ambiente, desenvolveu a arte de criar artifícios para que a vida lhe fosse mais fácil. Pena que essa arte carregue o paradoxo de não ser usada exclusivamente em seu próprio benefício. É caso para suspeitar que o Homem não (a)mer(e)cia tal dom.
A primeira grande criação foi o domínio do fogo (aproveita-se o ensejo para recomendar, para quem nunca viu, o fabuloso filme “A guerra do fogo” de Jean Jacques Annaud, 1981). A segunda grande criação, aquela que é habitualmente classificada como a maior, foi a invenção da roda. Mas foi sobretudo nos últimos 200 anos que a capacidade criativa do ser humano mais resultados produziu. Bons e maus. Com prejuízo de outro juízo, destaco, não necessariamente por ordem de importância: o livro impresso, a rádio, o telefone, a eletricidade, o preservativo, os óculos, o automóvel, está bem, o computador, bom, a televisão também, etc, etc.
Uma das criações que raras vezes é referenciada mas de igual importância é a do figorífo e da arca congeladora. A nossa vida seria um pouco diferente, para pior, se não tivéssemos um livrinho para ler – com óculos ou não -, um telefone/telemóvel para estar sempre contactável, um computador com internet para visitar o Baságueda, um automóvel para levar os meninos à escola, uma televisão com telenovelas da TVI... Estou convicto, todavia, que seria seguramente muitíssimo pior se não tivéssemos frigorífico ou arca congeladora.
Diferente de outros inventos, estes eletrodomésticos não vieram apenas conferir mais qualidade à nossa vida, eles vieram efetivamente facilitá-la. Sobretudo porque o conseguem numa área que nos é muito sensível: o sistema digestivo. Somos bem capazes de viver com um frigorífico (ou arca) e sem computador, duvido que tivéssemos qualquer interesse em seguir a telenovela ou espreitar a blogosfera se o mesmo eletrodoméstico não estivesse disponível (e carregado).
Mas a arca congeladora não trouxe apenas benefícios: produziu efeitos terríveis no sistema sócio-económico das pequenas comunidades rurais. Explicito. Antes de ser possível a conservação dos alimentos na arca, os pais dos nossos pais e seus avós tiveram de desenvolver, utilizando sabiamente o seu dom criativo, esquemas mais rudimentares, mais trabalhosos, mas não menos eficazes, para conservarem alguns produtos alimentares, pelo azeite, pelo sal, pelo fumo… Não eram consumidos em fresco, mas não era por isso que sabiam menos bem. E os frescos? Como consumiam eles carne fresca sem irem à grande superfície, simplesmente, comprar? Para resolver o problema, os nossos avós e seus progenitores só precisaram de ser “sociais”, que é aquilo que o ser humano sabe fazer da melhor e da pior maneira, com os melhores e com os piores resultados. O ser humano é um eminentemente social, um ser que precisa de se relacionar com os outros, de ser solidário, de (a)mer(e)cer afetos, de os receber, de os dar...
DAR! Para (a)mer(e)cer!
Imagine-se um mundo em que o DAR era um valor supremo: quanto mais déssemos, mais (a)mer(e)ciamos, mais subíamos na escala social, mais elevado era o nosso estatuto. A riqueza e a fama não resultavam da posse mas da dádiva. E imagine-se que todos os elementos da sociedade assumiam esse valor. E que o praticavam! com o mesmo empenho que se aplica à acumulação egoística da riqueza dos nossos tempos. Um mundo (quase) ao contrário. Um mundo em que o prestigio do dador aumentaria na proporção da sua dádiva. A vantagem estava no dar, no receber, no retribuir, não no ter ou possuir.
Como bem diagnosticou Marcel Mauss na sua obra mais marcante intitulada “Ensaio sobre a dádiva”, dar, receber e retribuir são elementos essenciais à constituição e manutenção das relações sociais nos povos “primitivos”, regulando a amizade e o conflito, a proteção e a assistência mútua. A reciprocidade e o intercâmbio funcionariam como fator de estabilização da comunidade. O espírito calculista e interesseiro orientado primordialmente para a vantagem material que actualmente subjaz à dádiva seria dirigido para a conquista de prestígio social. A competição não estaria em conseguir riqueza e guardá-la egoisticamente, antes, estaria em produzi-la para a redistribuir. Mas isso era nos povos “primitivos”.
Numa escala e num tempo específico, esse mundo foi experimentado. Numa tribo do Canadá, o antropólogo Franz Boas foi encontrar uma sociedade cuja organização social assentava no potlach, um sistema de trocas em que a dádiva era socialmente valorizada. Havia uma espécie de campeonato entre as aldeias e o título era conquistado pelo chefe da comunidade que dava mais.
Na nossa beira rural, no tempo dos nossos avós e dos pais deles também se praticava uma espécie de potlach à moda da beira, e era com ele que ficava resolvido o tal problema de consumir carne fresca sem grandes superfícies comercias: bastava-lhes dar, receber e retribuir. Porque faziam por (a)mer(e)cer a dádiva…retribuindo.
Tacitamente repartidas pelo calendário do tempo mais fresco, e descontadas as partes destinadas à conservação no fumeiro ou na salgadeira, as famílias da comunidade iam matando o seu porco e distribuindo pelas outras, as partes consumíveis em fresco, num fenómeno que ia muito para além da dimensão estritamente economicista, baseada apenas no cálculo racional, porquanto carregava uma matriz de componentes simbólicos associados ao reconhecimento, à solidariedade, ao reforço dos laços, à integração na comunidade, à identidade colectiva.
A casa da Ti Mari Rancheira era a última, dos 8 irmãos dela, a matar o reco e a quarta dos 5 irmãos do Ti Manel Rancheiro, seu homem. Desde Outubro que andava a receber chicha fresca todos os fins de semana. Agora, na entrada de Fevereiro, tinha sido a vez dela. O que restava do animal depois de retiradas todas as carnes para o fumeiro e da pata traseira para o presunto da salgadeira, jazia alinhado na banca escura de castanho. Ti Manel já tinha feito uma primeira divisão das carnes, separando o chispe, o lombo, a pá, a barriga, o entrecosto, o toucinho. Ti Maria começou por escolher as partes que ia mandar para a sua irmã Natércia, que era quem (a)mer(e)cia mais, por via dos 4 garotos pequenos que lá tinha em casa; e também porque ela tinha tido pouca sorte com o homem, coitada, o borracholas do Porfírio Néné, que não tinha artes para trabalhar. E sem se lembrar sequer que a irmã lhe mandou apenas a prova da farinheira quando matou o porquinho, Maria fez questão de ser generosa: escolheu um bom naco do lombo, e outro de toucinho da barriga e acondicionou tudo cuidadosamente no fundo da cestinha de verga comprada ao Ti Ambrósio cesteiro no último mercado.
A compreensão deste tipo de impulso para a dádiva, ensina Pierre Bourdieu, precisa que se abandone o paradigma que junta a filosofia que reduz toda a ação ao princípio da intenção consciente, com a teoria economicista que dogmatiza o cálculo racional e o interesse económico. Se existe uma intenção consciente na Ti Maria Rancheira, não é seguramente a busca de proveito material. No vocabulário característico de Bourdieu, ela renega a dimensão económica a favor da dimensão simbólica, o que ela busca é a acumulação de capital simbólico, conquistado precisamente pelo ato de dar. Nenhuma sociedade sobreviviria com este paradigma como dominante.
Voltemos à casa da Ti Maria:
- Ó Mnel, anda cá. Vá! Vai lá à nossa Natércia a levar isto, mas no te demores porque inda tens de ir hoje ó nosso Farnando, ó nosso Zéi, ó nosso Tó e à nossa Glória.
Mnel Rancheiro, como qualquer homem daquele tempo, não se metia nos meandros e pormenores daquele potlach, a sua função tinha terminado com a desmancha do porco, agora era com a patroa, e saiu de casa sem sequer ver o que levava. O caminho até à casa da cunhada Natércia passava pela rua da taberna do Fatela. O convite do compadre Fcisco Cávai para um copito de tinto impôs-se à recomendação da mulher. A moda da rodada ditou que bebesse 3 e pagasse o quarto, enquanto se entusiasmava com o debate sobre a poda da vinha, arte em que ele se assumia exímio. Só se deu conta do relaxe quando o cunhado Porfírio Néné entra para a sua sexta visita ao Fatela e pergunta:
- Ó Fatela, andas a tratar os cães com´a reis, ah!?
- Eu?, Ná! Atão proquêi?
- Ia ali o fadista e o leão à bulha por um bocado de tócinho…
- Ai valha-me nossa senhora! – grita Mnel Rancheiro – tu queres ver que era o tocinho estava ali na cesta qu’a minha me mandou ir a levar à tua!
- Ó porra!, atão aquilo é meu? Cabrões dos cães, espera aí qu’ê já os coço.
3 comentários:
Não haja duvida que o frio artificial revolucionou o dia-a-dia das populações das aldeias.
Quanto ao ti Mnel, com um copo de 3 a mais, estou em crer que arca congeladora e salgadeira foram pra ele a mesma coisa
MAIS UM TEXTO MARAVILHOSO EM QUE , AO MESMO TEMPO QUE NOS TRANSMITE CONHECIMENTOS , NOS NARRA UMA ESTÓRIA DAQUELAS CUJAS RAÍZES SÃO AINDA O SER DA NOSSA REGIÃO.
Bem haja ,pois ,
Quina
Como os cães estragam o convívio de um copito de tinto.
Com sorte, safou-se o naco de lombo lá vno fundo da cestita de verga.
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