sábado, março 26, 2011

A NOSSA FALADURA - CLXV - CODECIDO

Todos conhecemos a irrequietude das crianças. Com razão dizemos que, quando não as sentimos buliçosas, ou estão doentes ou a dormir, ou, então, estão a fazer asneiras.

Todos sabemos também que entre os dois anos, mais ou menos, e os cinco, elas vivem a chamada idade da graça, como superlativamente lhe chamou Hamilton. Metem "bojardas" descabidas, mas como nos rimos face ao absurdo, elas pensam que estiveram muito bem e, claro, sentem-se contentes, porque no seu egocentrismo, este vedetismo encaixa de forma perfeita.

Todos reparamos que mal começam a construir frases a pergunta fundamental é "Porquê"?, a propósito seja do que for.

Em regra dizemos que são curiosas, mas não é essa a motivação que as impele continuamente a querer conhecer e saber de tudo o que as envolve. A questão é muito mais complexa e, sem sombra de dúvidas, é a necessidade de segurança que as força a querer saber. É também por isso que elas exigem colo quando, por exemplo, estamos com elas num local onde o horizonte delas é muito limitado. Quase trepam por nós acima porque querem estar à nossa altura e ter horizonte de visibilidade idêntico e, se puderem deitar a mão, é certo que não desperdiçam o ensejo.

A personalidade é dinâmica e vai-se construindo aos poucos e, se de algum modo, como queria Freud, o aforismo "os adultos que somos depende da criança que fomos", não se verifica em todas as circunstâncias. Se tal fosse verdade, então a dinâmica do homem seria um condicionamento retaliado e a astrologia poderia merecer algum crédito. Ora nem o homem pode ser sujeito a padrões estilizados e padronizados nem a astrologia é merecedora de qualquer ponta de crédito tantas as enormidades das candongas em que faz incorrer os incautos.

Por isso é que, se a mania de fazer perguntas é comum a todas as crianças, depois, já jovens e adultos, nem todos mantêm esse espírito indagador e investigador, limitando-se a fazer parte do anonimato, no "Maria vai com as outras", sem qualquer laivo de espírito aventureiro e criativo.

Convém, ainda, tal como as crianças, ir arriscando, ousar fazer coisas novas, sem sermos estouvados a ponto de querermos dar o passo mais do que permite a perna. É que 'podemos ir por lã e voltar tosquiados.'

Vem tudo isto- pasme-se - a propósito da primeira vez que espetei uma faca num porco para o matar. Saí-me bem na picadela, mas já não tanto na abertura do animal, parte em que tive que puxar por alguma inventividade, para não ficar a ser alvo de alguma choradela de entrudo. Remediei tudo na confecção da meloreja que saíu na perfeição e, antes ainda, na separação das tripas, arte em que imparo com as mulheres. O espanto foi tal que a ti Gulhermina se sai com esta: «o rai do cachopo é mesmo codecido».

Fiquei assim para o aparvalhado já que nunca tal significante ouvira e portanto também não lhe conhecia o significado. Não fora o contexto e ficava, como tinha acontecido quando abri o porco. Tinha que me desenrascar. Se me meti nelas é para ir até ao limite do razoável.

Passado tanto tempo - já lá irão alguns 20 anos ou mais - lembrei-me hoje do codecido. Não consta nos dicionários e portanto - lá está a veia da descoberta a espicaçar o engenho - pus-me a tentar descortinar qual o conceito erudito, parelho deste popular...

Alguns dos que me lêem ainda se lembram dum famoso comentador de futebol que dava pelo nome de Alves dos Santos. Quando um avançado sabia estar no lugar certo à espera do endosso da bola e aproveitava a oportunidade para rematar à baliza e, quiçá, marcar golo, invariavelmente Alves dos Santos enobrecia a codícia desse jogador. Tanto quanto me é dado saber o mais usado nem é o substantivo - CODÍCIA - mas o adjectivo -CODICIOSO - e, mais grave ainda, este adjectivo aplica-se na linguagem tauromáquica e refere-se ao touro que busca tenazmente atingir o cavaleiro ou o matador durante a lide.

A semântica deve ter feito o resto e o significado foi-se adulterando a ponto de chegar a este de fura pastos curioso e atrevido que não vira a cara a nada nem desiste, tal como o touro - que por acaso também é o meu signo - para brincarmos à astrologia.

Se algum de vós fizer melhor leitura do termo, deixe notícia.

As matanças constituem, também elas, um ritual de convivência, com características muito sui generis a ponto de haver a parte que compete aos homens e a que compete às mulheres. Um dia contaremos estas secções.

No tempo morto que medeia entre a parte final da abertura do porco e a confecção da indispensável meloreja há sempre histórias que se contam: umas conhecidas, outras nem tanto. Nem tudo é igual para todos.

Foi assim que na matança do Tonho Labouxa o Guilherme Chornico se sai com esta, para alguns mais que batida:

Dois amigos comprometeram-se a beber sempre dois copos, sendo um sempre à saúde do outro e o taberneiros já sabiam que serviam sempre dois copos. Mas um dia um deles diz ao taberneiro:"bota só um" e o taberneiro: os meus sentimentos! e ele: de quê? Então seu amigo não morreu? - Não! Eu é que já não bebo.

Também é uma resposta codecida. Saíu-se bem.

XXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGRRRRRRRRRAAAAAAAAAANNNNNNNDEEEE

3 comentários:

António Serrano disse...

Começa~se por uma fundamentação psico-filosófica sobre comportamento infantil e sua expressão nem sempre a condizer, na vida adulta, em que é mais fácil "ir com as outras" ... tão comum à grande maioria da Humanidade. Sempre é mais fácil do que entender, penetrar na densidade destes "prefácios"...
Depois a matança do porco é que fala mais comigo, embora nunca tenha experimentado levá-la "aos finalmente", não indo além do evitar que o rabo do porco fosse roubado. Grande "choradela" havia de ter lá no Entrudo já tão próximo... Por isso, o "codecido" andou sempre longe de mim.
Ah! A resposta do amigo que já não bebia foi "mortal"!!! Cabeça que pensa... não vota "à parva"!
Que venham mais, para eu ler duas ou três vezes. Ui! A falta de codícia, nesta idade ou noutra, dá nisto: ler, reler, "treler". Com gosto.

Zé Morgas disse...

Essa resposta "codecida" faz-me lembrar outra igualmente "codecida" daquele cabo verdiano que ao regressar a casa com um Garrafanito de vinho, o vizinho lhe diz:
- Eh pá! esse vinho parece do bom, não me dás um copito?
- Dar até dava. Mas não pode dar, meu vinho está em baixo, o de cima é do meu compadre.

Idanhense sonhadora disse...

Amigo das terras beirãs de Penamacor :
Já por várias vezes vim estreitar o seu blogue e tornei-me "usera e vezera " bela sua qualidade e pelos interesses que mostra . Por isso o tenho na minha lista de blogues preferidos ,esperando que de tal não se importe . Se quiser visitar o meu e deixar o seu comentário ,fico grata . Uma boa Páscoa
Idanhense sonhadora