sábado, janeiro 01, 2011

A NOSSA FALADURA - CLXII - ESGRAVUNA

Uma das características daquele que por muitos é considerado o pai do existencialismo, um filósofo dinamarquês, cujo nome é difícil de escrever e de dizer, contrapondo-se assim a um irracionalismo, que desembocou no niilismo, no sentido em que era necessário uma metamorfose do homem, alijando para longe todos os valores de um ser espezinhado por uma cultura judaico cristã escravizante e falsa, promissora de benesses sem fim no mundo do além é, o individualismo.
A vida de cada um é única. Não pode ser enclausurada em nenhum sistema, pela simples razão de que, a cada passo, cada um de nós está sujeito às maiores imprevisibilidades e a submissão ou obediência a esquemas pré-escritos ou determinados, imitando as moiras dos clássicos gregos, é descabida, desajustada e ineficaz. Os nossos problenas são os nossos problemas e temos que ser nós a resolvê-los. Não se invalida a cooperação, mas se não for eu a jogar nunca me sai o prémio. Basta ler o Desespero Humano para aí se ver a razão do que se disse.
Não há linha contínua para o ser humano. Ele é bicho enguia, deslizador, polvo hábil que passa por onde se pensa que é impossível, sagaz leopardo, sempre novo na emboscada que trama.
Alguns, mormente os americanos, esses bebés ainda de leite em termos de nação, quiseram levar ao extremo o aforismo de que de pequenino é que se torce o pepino. Vai daí, criaram a doutrina que pegou fogo no Ocidente e, tal como a matriz judaico cristã e os fundamentalismos islamitas apenas têm uma leitura do que nos envolve, pondo talas limitadoras de horizontes nos olhos dos seus seguidores. Partiram do pressuposto que o homem reagiria sempre da mesma maneira face à mesma circunstância. Se é verdade que isso pode ser admissível, por exemplo, no comportamento de soldados obedecendo, todos da mesma maneira e ao mesmo tempo às ordens dos comandantes, já não é verificável em todas as situações privadas, em que cada um usa da sua autonomia para agir como bem entende, sem regra fixa e muito menos universal.
Em suma o ser humano é como um pião esgravuna. Nunca se sabe para que lado vai na roda, depois de ser lançado da baraça.
Muitos dos que me lêem ainda jogaram ao pião. O mais vulgar dos jogos de pião consistia numa roda de maior ou menor diâmetro, mas no mínimo teria 3 metros, quase a largura do centro da estrada, tendo concêntrico outro círculo, ao centro, onde se punham os piões que morressem, isto é, aqueles que, uma vez lançados à roda, não saíssem do perímetro da circunferência representada no chão do alcatrão e desenhada por uma cunca de telha.
O jogo sendo colectivo, porque tinham acesso à roda 6 ou 7 jogadores, quando não mais, tinha, mista, a característica de ser individual: cada um tinha o seu pião e era com ele que jogava e por ele se sujeitava a todas as ocorrências que fossem acontecendo. Não havia tempo limite e podiam entrar uns e sair outros. Um pião atirado para a roda tinha que sair dela pelos seus próprios meios. Podia ser ajudado por outro jogador enquanto dançasse. Depois de cair, se ficasse dentro do círculo, ia para a poça (o tal círculo ao meio) e esperava que os outros o salvassem através de pontaria afinada, atirando o pião para próximo dele até sair da roda. Às vezes, a ajuda dava em castigo, porque o colaborador sujeitava-se a ficar também ele no interior do círculo. Faziam-se acordos, quando não negócios e até apostas sem grande mal para o mundo. Afinal o pião era um jogo tal como a vida também é um jogo e se estão sempre a fazer acordos.
Alguns de nós faziam os próprios piões e até as baraças eram tecidas em carros de linhas, na coroa dos quais se espetavam quatro pregos e se entrelaçavam, à laia de uma trança, os diferentes fios de algodão, roubados do açafate de costura da mãe.
A maioria, porém, apesar de ninguém ser rico, sempre arranjava as cinco coroas para um pião de pinho, ou os cinco mil réis para um de azinho, o Ferrari dos piões. A compra obedecia a exame prévio e conselho de amigos e companheiros, avaliando o equilíbrio, a robustez, a longitudinalidade, a latitude, a lisura da coroa, o aguço do ferrão, a lisura do corpo, o peso do todo, em comparação com outros, enfim, um exame cirúrgico, de minúcia, mais que microscópica. A questão mor era se seria esgravuna ou dormente. O ideal era um pião que nem dormisse na posição onde caísse porque podia , apesar de "agarrar" bem quando se deitava nas últimas voltas, nem tão esgravuna que fosse impossível prever para onde se dirigiria uma vez atirado para a roda. Havia sempre o perigo de esgravunar para dentro e, pronto, lá ficava sujeito às nicas dos outros.
Assim somos nós... São poucas as vezes em que somos previsíveis. O pior é que, muitas vezes devíamos mesmo desobedecer às sondagens que andam sempre a querer determinar o nosso comportamento e fintá-las para ver se não domesticam tanto o pião.
Vêm aí eleições: a ver se somos esgravunas e saímos da roda.
Boas festas e porrada no madeiro que ainda está inteiro.
XXXXIIIIIII GRRRRRRRAAAAAAAAAANNNNNNNDDDDDDDDDDDDDDDDEEEEEEEEEE

3 comentários:

Zé Morgas disse...

Temos que ser esgravunas de arranque rápido. Se não saímos da roda, não levamos só umas nicadas, desta vez, papamos toda a porrada que deveria levar o madeiro, até ficarmos todos escarchadinhos...

António Serrano disse...

Deu uma "trabalheira" entender o preâmbulo do texto, quase igual à que me deu aprender a "deitar o pião". Mas valeu a pena!
Depois as lembranças de uma infância querida foram mais que muitas, escrita magnífica, voltando sempre a tentação de classificar "esta é a melhor de todas".
Felizmente, tal previsão nunca tem razão de ser e a "certeza" de que a "melhor" está p'ra vir continua.
Esgravunar?! Os piões mansos é que levavam mais "nicas"...

pratitamem disse...

Já não comento como antigamente, vai lá vai, também estou a ficar velho como tu Changoto, e os velhos sabem muito...