Não sendo muitos, sempre foram alguns de que me lembre, os chamados "negociantes", por terras xêndricas. Nenhum se sobressaía aos outros e, muitas vezes, até faziam sociedade. Lembremos uns quantos: Zé Labouxa (o tal que descobriu o ninho à mouxa =mocha - fêmea do mocho), ti Chquim Vaz, pai de Alberto, autêntica esponja vinícola, que todos os anos moía com a sua mansa junta a azeitona no lagar da Lameira.
Que pena ter-se ido esse lagar!
Tenho visto muito lagar de varas mas nenhum como esse: nem em localização, nem em espaço, nem em lagareiros, nem em qualidade do azeite espremido, nem em convívio, nem em robustez e perfeição de construção. Uma beleza na arte e técnica de fazer azeite.
Já por mais de uma vez me fiz aqui eco dessa riqueza de aldeia que vai desaparecendo aos pouco por debaixo de bosta de galinha, peru e afins... assim se estraga o nosso passado histórico.
Mas voltemos ao tema da BOIEIRA e dos "negociantes": Ainda havia o Ti joão Valente, pai do amigo Zé Cadete que visitou Nova Iorque a bordo da Sagres, o Tonho Augusto, pai de Zé Augusto, marido da Rosa do Café, o Zé Branco e mais uns quantos que esporadicamente também se dedicavam a esta vida, mas não com a frequência dos que citei: Manel Guerra, o Geba e seu irmão Domingos, o Vigura, às vezes Miguelito e, mais tarde a dupla de sucesso nestas andanças, meu tio Tonho Cunha e Zé Cigano.
Corriam os mercados e feiras da raia e viviam dos negócios que iam fazendo. Era vê-los de jaqueta ao ombro e a indispensável boieira, bem presa com alfinete de dama, no bolso interior.
Burros, machos, vacas e vitelos, rebanhos inteiros, tudo negociavam e pagavam a pronto: sacavam da boieira e de lá retiravam as "notas". Um burro valente, manso de dente são, alto de joelhos, crina reluzente, bem arreado era animal para umas quinze notas, o equivalente nos tempos de hoje a sete euros e meio. Exacto: um conto e quinhentos ou quinze notas que era a unidade de negócio e valia cem escudos cada uma. Tinham a efígie de D. Afonso de Albuquerque e pareciam um lençol.
A contagem das notas e a consequente passagem de uma mão para a outra tinha um ritual: Sacada a boieira, essa enorme carteira em cabedal, bordada e com dois rasgos protegidos por duas películas de casquinha onde estavam a mulher e os filhos em fotografia, as notas começavam a ser puxadas uma a uma, esfregadas entre o indicador e o polegar, confirmando se não iam duas de uma vez a troco de uma cuspidela nos ditos dedos e: "Promeira","Sgunda", três, quatro, cinco... "Conte lá a ver se lá tem cinco que ele fez-se para se contar". Conferida a mais que revista enumeração, voltava-se ao ritual: Promeira, Sgunda,... até terem passado as quinze notas de uma boieira a outra.
Ao fim, é claro, havia sempre o alboroque. Todos os negócios eram feitos com alboroque, ao fim. Era o fechamento do contrato.
Duma vez Chquim Vaz viu-se negro com um cigano: vendeu-lhe uma burra já quase cega, bem tratada sem dúvida, mas de aparência desleixada. Passados quinze dias, na feira da Zebreira volta a encontrar o cigano e negoceia com ele uma burra. O cigano bem dizia: "é um belo animal embora num tenha vista, mansinha como a terra, sabe lavrar, andar para trás com a carroça e chega-se ao batorel para as mulheres se poderem montar...mas num tem vista" Chegam a acordo por oito notas, Vaz traz a burra na camioneta do Balhau e mal a descarrega na Lameira a burra mete-se a caminho direitinha ao palheiro. A ti Ana mal a viu: "Olha a Boneca". Chquim Vaz nem estava nele, praguejou, amaldiçoou o cigano e volta à Zebreira, mas cigano viste-o! Lá tirou inculcas e consegue saber que vivia em Segura... Lá vem com Balhau e Boneca, acaba por encontrar o cigano e ia-se a ele... O cigano:"calma... Eu num o enganei... Sempre lhe disse que era um belo animal mas que num tinha vista. " Chama-se a guarda, confirma-se a versão do cigano e o veredicto foi que não foi o cigano que o enganou, mas ele que se deixou enganar pela beleza do animal. Vaz roía uma travisca de giesta e diz para o cigano:"Torno-te a burra por cinco notas" O cigano agarrou nas cinco notas e tornou a ficar com a burra. Vaz andou uma semana sem dormir: a pensar que tinha ganho na venda da burrica acabou por perder três notas na torna e mais duas e meia que teve que dar ao Balhau pelo frete, fora os copos que bebeu para abafar a mágoa.... Vidas!
Tardou a ter outra vez a boieira cheia.
XXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGGGGRRRRRRRRRRRRRAAAAAAAANNNNNNDDEE
6 comentários:
A minha boieira anda cada vez com menos notas.
Parece que foi o Chim Vaz que enganou o cigano, pois quando lhe vendeu a "boneca" da 1.ª vez,não lhe disse que ela não via bem. E por quanto lha vendeu dessa vez?
Parece que foi o Chquim Vaz que enganou o cigano, pois quando lhe vendeu a "boneca" da 1.ª vez,não lhe disse que ela não via bem. E por quanto lha vendeu dessa vez?
Mas que forma deliciosa de contar a maneira de ser da vossa gente. Quase nossa. Estou a ver algumas das personagens deste bem divertido texto.
Bem hajais!
Fico à espera do próximo. Venha depressa!
então ???? não há mais textos ? Aderiram à greve ???
Grande imaginação !
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