quinta-feira, outubro 01, 2009

A NOSSA FALADURA - CXLI - BO(U)RNAL

A sinonímia sempre acarretou problemas à comunicação. Na verdade, as palavras são como as pessoas: todas têm uma história. Não é por acaso que cada uma delas existe. Mesmo entre os grandes teóricos da linguagem e da comunicação não há unanimidade interpretativa. Desde logo porque a disciplina que faz a crítica da linguagem, podemos dizer que uma espécie de epistemologia da linguagem, tal como há uma epsitemologia científica, refiro-me, está bem de ver, à HERMENÊUTICA, traz consigo o deus dos ladrões e dos comerciantes. Hermes, esse veloz deus helénico, de asas nos pés, mensageiro dos mais hierárquicos, e que os romanos traduziram por Mercúrio, acumulava esta dupla protecção: ladrões e comerciantes... Sem nos determos muito neste acopulamento (comerciantes e ladrões), que, seja como seja, não deixa de ser interessante, avancemos para outro pormenor da linguagem/fala/comunicação.
É claro que não se pode meter tudo no mesmo saco e não é aqui que isso vai acontecer. O Baságueda pode brincar mas não ofende: tem humor mas não ironiza, brinca mas não faz mangação, ousa mas não violenta, serve mas não se escraviza, MAINADA!
Interseccionemos esta cangalhada toda a ver se chegamos ao bornal:
Sirva de exemplo o histórico facto de a língua latina ser o meio de difusão privilegiado inter centífico no mundo ocidental. Foi já tardio o aparecimento das primeiras universidades laicas, que a maioria dos locais de ensinança eram os mosteiros e as suas escolas monacais. Os burgueses aos poucos foram-se intrometendo entre os nobres e o clero, que o povo, esse, limitava-se a ser servo de gleba e, vá lá, às vezes, vilão franco, o povo, quanto menos soubesse, melhor - assim não recalcitrava... -. Dizia eu que os burgueses lá se foram, aos poucos, libertando das peias eclesiais e, ao mesmo tempo que fundavam cidades nas encruzilhadas das grandes vias, também construiram escolas para os seus filhos. Com a colaboração dos goliardos, cárpatos e outros proscritos pela santa madre igreja católica apostólica romana, conseguiram escolas de tão grande renome quanto as herméticas oficinas do saber bibliotecárias, manuscritas e dogmáticas escolas monacais. A abertura a novas formas de pensar incipientes e a natural rebeldia de quem, com o sangue na guelra, eivado da novidade e garantido e avalizado por um novo riquismo que competia com o clero e os nobres suseranos latifundiários, ousava PROVOCAR o stablishment, aos poucos, foi conseguindo romper com a afogo e o sufoco que o severo dogmatismo impunha. O latim deixou de ser a exclusiva língua e algum do saber já se difundia na língua original, tanto mais que, após Guttenberg, nada ficou como era: a bíblia, claro, sempre como ex libris, mas também romances e novelas de cavalaria que deram azo a demandas do graal e a códigos da vinci e por aí fora. O latim, inacessível como era e ainda é, agora mais ainda que já há muito pouca gente que o domine, o latim era um obstáculo comunicacional... Não admira que os detentores do saber, conhecedores como eram desse fenómeno, comunicassem com a populaça, através de símbolos: lá vem a cruz, a bandeira, a sigla, a marca, o distintivo, a patente, tudo o que servisse para indicar ao maior universo possível, a mensagem que se pretendia transmitir, o jargão, a oração comunitária, as rezas,... Ainda havia aquilo a que nós chamamos slogan e o famoso AMÈN que indicava um ASSIM SEJA subserviente.
O bornal do povo era repleto com dogmas, mandamentos, imperativos negativos, virtudes, obras de misericórdia, normas de conduta, que sei eu,...
As festas populares tinham os seus tempos: o povo não podia fazer festas a seu bel-prazer: tinha que festejar quando as autoridades eclesiásticas o autorizassem - nem sequer era senhor de gerir a sua, já de si, parca ementa: os ricos que tinham dinheiro para bulas papais enchiam o fato a bel-prazer, o galego, sem dinheiro sequer para uns tamancos, esse, tinha que roer botelha a ver se se sustentava: isto sim foi o que o Cristo pregou... Adiante...
O bornal propriamente dito não era aquele alforge de Júpiter que nos pôs às costas uma bolsinha com os nossos defeitos e à frente uma enorme com os defeitos dos outros... O próprio Cristo se fez eco desta fábula de Esopo, depois transcrita por Fedro e mais tarde actualizada por La Fontaine: vês o algueiro no olho do outro e não tropeças na tranca que tens nos teus olhos.
Antes, era uma espécie de saca , regra geral em pele macia, tipo odre, mas com boca de ajuste com ataca do mesmo material e uma tomba para fecho definitivo e servia para levar merenda para festa, ou para monda, vindima, sacha de milho, quintos na ceifa, enfim, alturas em que se juntava a família e era preciso muito entulho ou se ficavam dias sem reabastecimento. Não raro ia nas angarelas, bem acomodado, que as iguarias não se podiam estragar nem sequer amelancar: bacalhau de horta e pataniscas do mesmo, algum coelho macho já substituído, um galo assim comédado, ovos verdes, chouriço de azeite, orelha de porco e tromba do mesmo animal de salgadeira, algum naco de de presunto, tora de toucinho, cunca de queijo, corno de azeitonas, casqueiro roda de moinho, grande quanto bastasse, e o mais que houvesse e desse jeito para botar na manta estendida:o bornal levava todo o farnel.
Bornal era ainda aquela pessoa que tudo atamancava e misturava os pés pelas mão: "és mesmo um bornal" ou aquele outro que arcava com tudo e de tanta serventia aos outros era chamado de bornal.
As casas meãs não tinham terrenos nem gado para feitor ou maioral, mas, em regra, sustentavam uma espécie de criado que tirava esterco a porco, guardava e ordenhava cabras e/ou ovelhas, fazia a horta, recolhia o feno, tomava conta da alguitarra no tempo da aguardente, ia à agua para as necessidade domésticas, apanhava vides, queimava lenha de limpeza de árvores, e o mais que aparecesse. Era um bornal: no outro cabia tudo a este cabia-lhe tudo. Dois Bo(u)rnais.
Era assim a vida...
XXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIII GGGGRRRRAAANNNNNDDDDDEEEEEE!

4 comentários:

António Serrano disse...

Também tive o meu. Bornal, claro! E vi muitos! Quase tantos como os chapéus do "outro"...
Por mais esta bonita passagem literária, com estilo e conteúdo, a relembrar-me uma época querida e destestada - a vida é paradoxal?! -aqui fica uma abraço bem agradecido.

Zé Morgas disse...

Ainda com o cardápio vindimal em mente, pergunto quantos bornais seriam necessários para carregar todo aquele farnel?
Por certo uns bornais bem talegos...
Quem vai tratar de encher o bornal, o "meu bornal", é cá o "je", sábado no convívio dos Jaricos.

nabisk disse...

O amigo changoto, só faltou dizer que do bornal, até os burros comiam.
Normalmente eram refeições ligeiramente raforçadas,uns baguinhos de milho ou uns grãozinhos de trigo ou aveia.
Na Vila viam-se bastantes com ele enfiado pela cabeça."os burros claro""
Desculpe a intromissão.
cumprimentos
nabisk

AC disse...

Olá amigos!
Nem só as bestas comiam do bornal: quando, na taberna, os parceiros do truco, da bisca ou da sueca, recebiam as cartas na mão, apertavam-nas bem contra o peito, escondendo-as bem escondidinhas, não fossem os adversários deitar o olho... e comer do bornal!