segunda-feira, agosto 10, 2009

A NOSSA FALADURA - CXXXVIII - (T)CHAVASCAL

Já uma vez, creio, aflorei aqui a temática do barulho.
De Darwin para cá, muitas foram as leituras a que estávamos profundamente arreigados, que sofreram alterações significativas, quando não, mesmo, subversões e até inversões. Simples: muito daquilo que aceitávamos como verdade dogmática, certeza inabalável, quase com o valor da (incrível) infalibilidade papal , veja-se que foi já este Bento, dito XVI, finalmente, acabou com a existência (e consequente crença) do Limbo. O Limbo era aquele local etéreo, para onde iam os recém nascidos que não tivessem sido baptizados antes de morrer. E não acaba com o Purgatório pela simples razão de que, se acabasse com ele, não valia a pena continuarmos a rezar pela salvação eterna das almas dos nossos entes queridos: se fossem para o Inferno, de nada valeria a oração, e, se tivessem ido para Céu, dispensar-se-ia a prática, já que era desnecessária. Assim, com o Purgatório a meio da viagem, sempre vale a pena porque podem lá estar.
Foi assim que nos catequizaram e, claro, registamos impressivamente esta crença, que nunca pusemos em causa. Se alguém a contradiz, agarramo-nos a ela e até a tentamos justificar com os argumentos mais balofos.
Na minha vida profissional têm-se-me deparado situações muito semelhantes: sirva de exemplo a resposta à questão simples de ' quantos sentidos temos?' Invariavelmente a resposta é que são cinco: visão, audição, olfacto, gosto e tacto. Se insisto: então e se te escaldas? e se sentes fome, ou sono, ou sede, ou dor de barriga, ou uma picadela de uma abelha,... onde raio metes estas sensações? Pasmam boquiabertos, asseveram que foi que o seu professor da primária lhe ensinara e pronto...
O mesmo se passa com o barulho (ainda cá hei-de voltar): basta um pouco de sono ou um problema pessoal, ainda que pequeno, para eu já não ouvir quem se me dirige. A fome, o sono, a dor, e outros problemas tão silenciosos que não contamos a ninguém, são, afinal, barulhos ensurdecedores ...
O professor desempenhava o papel da autoridade máxima em matéria de garante do saber. Bom era que esta deferência para com os professores, nos tempos que correm, ainda se verificasse, não já com o mesmo peso, está bem de ver, mas que também não fosse tão desautorizado como é, ... Bem, adiante, que isto tem pouco a ver com o nosso (t)chavascal.
De facto, já quase nada é sagrado.Tudo, ou quase, passou ao campo do profano.
Lembro-me bem de ter lido um livro extraordinário de um autor francês (Georges Gusdorf) chamado Mythe et Métaphisique (Mito e Metafísica): «o profano submete-se ao sagrado, ao mesmo tempo que foge dele para não ser completamente dominado».
Hoje, os campos estão a inverter-se, pelo menos no que às crenças tradicionais do mundo ocidental diz respeito. Veja-se só a quantidade de religiões que a cada instante vão aparecendo, explorando até ao tutano a figura de Cristo. Se ele por aí aparecesse hoje, havíamos de assistir a muitas expulsões de vendilhões do Templo (católicos incluídos, que não são melhores que os outros).
Vamos lá à xendrice:
Verdade insofismável é que o clima antigamente- e nós não somos ainda nenhuns velhos caquéticos - o clima, dizia, era menos flutuante do que agora. Não precisávamos de boletim meteorológico, porque se verificava um ciclicismo quase invariável e a aprendizagem resultava de acumulações de saber, transmitidas de geração em geração e cá nos íamos safando. Já não é assim agora. Também aqui nada é sagrado.
A questão é que se ia da marvana até ao caminho das Águas e da serra às portelas, da lameira da pinta à saramaga, e tudo andava cultivado. Não havia baldios e os matos eram segados, que os fornos e os lares bem os catavam. Agora há codeços, giestas, estevas, tojo, rosmanos, pinhais cheios de caruma, mato e panojo por todo o lado... Tudo mudou.
Qual o garoto que não tinha uma vintena de costis e não os armava ao taralhão, ao pisco, à felosa, até ao rouxinol, ao melro, ao tordo e ao gaio ao papa-figo e à rola. Apanhava-se de tudo e em abundância e não se notava a falta nos campos. Coelhos, perdizes, pirolises, lebres, texugos, de tudo se matava e caçava,todos os dias, de Outubro a Janeiro e sempre havia para todos.
Proibido era como hoje, mas não se notava a falta... Outros tempos...
Certa noite - entre centenas delas em que o mesmo aconteceu - saí eu, nosso sargento, quinzinho das Águas, Celestino grande, Domingos perdido, ronquinha, riconho, nosso Mário e mais não sei já quem... Íamos aos pardais para a serra a dar vistas para o canchal da nora, ali atrás da Carochinha, tudo em fila, luzes apagadas para poupar pilhas que eram caras, e Perdido, já no meio do calipal (eucaliptal) pisa um graveto seco e ouve-se uma revoada. Riconho ordena imperioso: «'Chiu, pouco tchavascal, aqui há caça grossa». E havia: eram pombos bravos. Centenas deles. E baixos, fáceis de tombar.
A lua já se tinha posto e separámo-nos em grupos o mais silenciosamente que podíamos, sempre às escuras. Ao assobio combinado acendem-se as lanternas aponta-se para os calípios (eucaliptos) e " ena pá, o que pr'aqui vai!" Foi matar até gastar as pilhas. Nunca tinha visto tanto pombo bravo morto em tão pouco tempo. Repartiu-se a carga e «toca a andar num venha por i a venatória.» Subimos até ao alto e sai-se riconho:" ena cum filha da puta, já chegamos a castelo branco!" E logo ronquinha" cale-se, sua besta, num vê qué Penamacor" «mamerda é qué Penamacor... num vês ali a avenida marechal carmona? " acode Perdido: num sejas basbaque, atão num tás a ver ali as luzes do asil?»(Lar D. Bárbara Tavares da Silva) e vou eu: «ó Tonho põe um lenço nos olhos que levo-te pela mão e quando chegares ali às pias do Barata já vês que estamos na serra. No metas é mais chavascal» A custo, lá veio sempre a praguejar e só acreditou quando chegámos à figueiras da velha Garriça e começámos a colher uns figos... Ouve-se mais barulho e, apesar das pilhas fracas ainda caíram mais uns pássaros dos pequenos. Um fartote.
Tudo crime, tudo mau, tudo escusado. Era assim.
XIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII GGGGGGGGGGGGGGGGGGGRANDDDDDDDDDEEE

6 comentários:

Zé Morgas disse...

S´Tor tire-me aqui três dúvidazinhas:
extraordiário = extraordinário
camppos = campos
ytaralhão = taralhão
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"...Lembro-me bem de ter lido um livro extraordiário de um autor francês (Georges Gusdorf) chamado Mythe et Métaphisique (Mito e Metafísica): « o profano submete-se ao sagrado, ao mesmo tempo que foge dele para não ser completamente dominado». Hoje os camppos..."
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tchavascal, apanhei eu à séria no festival do sudoeste, Zambujeira do Mar, na noite de sábado para domingo. Como diz um amigo meu, alentejano, que vive paredes meias com um bar:
- cabrões, esta noite não me deixaram dormir cornos.
Diria eu em Penamacor:
- Foi um tchavascal tal, que nem preguei olho.
Abração
Zé Morgas

Zé Morgas disse...

cedrtga noite = ???

flausinita disse...

Mais um belo texto em que misturas vários saberes! Mas ficámos com curiosidade em relação a alguns aspectos...podias ter desenvolvido mais a questão dos sentidos....e até mesmo a do (barulho), chavascal. Mas compreendo, o texto ficava muito longo, o que quer dizer que vais fazer outro em que vais explorar a questão dos sentidos, não?
Fico à espera....

Anónimo disse...

Grande (T)Chavascal vai todos os anos na Lagariça, na altura das férias, com o regresso dos emigrantes à Santa Terra. Assitem-se a reencontros efusivos e barulhentos (seja a que hora for) que enchem a rua de palavreado galo-lusitano...formam-se grupos nos batoreis e dão-se abraços e beijos (3 ou 4 conforme a zona onde se reside em França)e pergunta-se pelo irmão, o pai, o sogro, os filhos...há dias que parece uma autêntica feira...mas é um (T)Chavascal alegre e propenso a reencontros! Um Xiiii coração

pratitamem disse...

Hum...? Então finalmente, também acabou, o sentido da redenção, com a mesma eureka, com que descobrimos, que na verdade foi afirmado na imprensa que purgatório está por um fio! Hum...

pratitamem disse...

No que respeita a mais este Poste do mestre, mas na sua essência metafórica que tanto aprecio. Não posso estar mas de acordo!