sábado, janeiro 24, 2009

A NOSSA FALADURA - CXXV - ACARUJA(E)R

O saber humano nunca é estanque. Verdade sem sofismas é também aquela que facilmente demonstra que nem sempre é o mesmo ramo do saber que se adianta aos outros e os arrasta. Ora é a Física, ora a pintura, ora a literatura, ora a música, ora a geometria, ora..., que faz a ruptura com o estabelecido e, de algum modo, dá razão a Thomas Kuhn, quando fala na crise de paradigmas e na necessidade que a ciência normal tem de se negar como dona da verdade e ceder o lugar, ainda que provisoriamente, à ciência extraordinária, porque os esquemas explicativos não esgotam os puzzlles ou enigmas que se vão deparando, muito devido aos avanços da técnica.
No caso vertente foi a Física que deu o passo. Louis de Broglie, prémio Nobel da Física, afirmava que se soubéssemos o que era um raio de luz, já sabíamos muito. As explicações para a propagação da luz são tantas - e todas têm fundamento de verdade - que não sabemos por qual optar. A corpuscular defende que a luz é difundida por pequenos corpúsculoss que a retêm e propagam e a prova é que, mesmo depois de o Sol se pôr, ainda temos luz durante algum tempo devido a esses corpúsculos; já o electromagnetismo tem outra explicação e assim por diante. Foi a Física, dizíamos, que deu o primeiro passo. Com a ruptura copernicana e as observações galilaicas, os cálculos de Kepler e de Newton, entre outros, ficou demonstrado que tudo se relaciona num complexo sistema de leis que a matemática aos poucos foi descobrindo. A própria Psicologia com Kurt Lewin vem aqui beber as relações interpessoais que mais não são que uma transmutação das Teorias de Campo da Física. O mesmo fez a Sociologia com Bourdieu ou mesmo Morin. Bem, adiante que se faz tarde...
Nunca estamos sós e precisamos sempre dos outros. Do grande outro. Do que está à minha volta e do que está mais afastado que, com mais ou menos impacto, também exerce influência sobre nós.
Não é por acaso que os nossos avós olhavam para o astro e decidiam do que fazer em função, por exemplo, da fase da lua ou do arco que a circunscreve mais longe ou mais perto, ou olhavam para o pôr do Sol e sabiam se vinha calor, vento ou chuva. Os Astrólogos, esse pantomineiros da futurologia, replicam, sem autoridade, esse saber empírico, iludindo os tarantas com bolas de cristal e coisas que tais....
O decisivo é que estamos sempre a influenciar e a ser influenciados por forças que nos envolvem: o campo, o campus, o habitus, o que quiserdes...
Tó Lindo, reformado da Guarda Fiscal e Beatriz Violas criaram o neto Quim, filho único do seu único filho que se tinha descuidado com uma mulher que desposou mas com quem quase não conviveu.
Quim não era o que se pudesse chamar uma inteligência. Tinha limitações de diferente ordem e Mné Chquim Carreiras dava-lhe explicações tentando, a poder de muito ""ah martelão que és um martelão, martelão martelão, tu num vês que isso não é um pronome mas um adjectivo adverbial"? Quim lá balbuciava os nomes complicados da morfologia gramatical e ora acertava ora levava com mais uma resma de martelão.
As explicações eram dadas no balcão ao cimo das escadas dos Bargões, de manhã, antes de o Sol lá bater e Mné Chquim parecia um arauto a pregar disposições de Sua Majestade. Ouvia-se em redor aí uns bons cinquenta metros e Quim era mesmo martelado. Pedagogias ... .
Nas manhãs de Março, já meio quentes, por vezes ACARUJAVA, o que era um transtorno para Mné Chquim que tinha que levar Quim para sua casa e , como não podia abrir a janela por causa do acarujo, que molhava, mais que o sobrado, o caderno de cópia de Quim, o martelão, martelão, martelão ficava confinado às paredes da casa e a exibição de Mné Chquim era assim uma reles amostra de influência e o seu campo de força como que ficava reprimido.
Por isso Mné Chquim passava a vida a amaldiçoar o acarujo .
Eu não morava longe e meu pai trabalhava na arte, ali mesmo entre a casa de Mné Chquim e o balcão dos Bargões, numa casota da Leitoa.
Mal me via Mné Chquim arrancava logo com uma pergunta mais rebuscada :" Que função passa a exercer na voz passiva o sujeito da voz activa? Quim, evidentemente, voz, só conhecia a dele, do avô , da avó , de Mné Chquim e mais uma quantas, mas a passiva e a activa ele nunca as tinha ouvido falar e portanto não as conhecia. Aventava o que lhe vinha à cabeça, desde predicado a advérbio de lugar, mas lá Agente da Passiva é que nunca. Ele de agentes também só conhecia os da Guarda Fiscal porque seu avô lhe falava dos agentes da alfândega.
A culpa era da gramática que tinha outros agentes que não eram do conhecimento do avô e, portanto, não exerciam qualquer força de impacto na cabeça de Quim. Estavam fora do seu campo de acção e ele não lhes sentia a influência porque não sabia da sua existência, como bem disse Bachelard, que também nunca foi da familiaridade de Quim.
Para que não fiqueis cheios da minha teoria de campo deixo-vos com um XIIIIIIIIIIIIII.

3 comentários:

Anónimo disse...

Claro está, a culpa é realmente da gramática!!! Decididamente - Não há hipótese!!Ganda Maluco!!!

António Serrano disse...

Agentes por agentes prefiro os da Escrita. Os Mestres!!! Parabéns por este magnífico texto. Consegui "rever", fazer reviver, na minha mente, o Mné Chquim Carreiras. Ele havia de gostar ter vivido nestes dias e de ler a vossa prosa...

João L Oliveira disse...

Atão mas o Karraio já há muito que não bota aqui faladura ....que é feito dele ?