sábado, outubro 25, 2008

A NOSSA FALA - CXV - TENTEAR

Vale Quem Tem, latoeiro de profissão, afastado por iniciativa própria para terras da Benquerença, onde ainda exerce a arte, tinha um borrego merino que mais parecia um lama da sul américa.
Era um regalo de ver : burra com angarelas carregadas de esterco, borrego merino sempre ao lado de Prazeres de balde à cabeça, assente em molídia feita por mão própria, a caminho da Quelha Funda. O borrego cresceu e cresceu. Era manso como a terra e mesmo quando se desafiava com um ZUPA! ele vinha à mão e o que queria era festas.
Prazeres e Vale Quem Tem ganharam amor ao borrego, mas já estava tão grande que era imperioso despachá-lo...
Eram dois os talhos de aldeia, onde se fazia directamente o abate. Não havia ASAE, a higiene era um facto e não há memória de qualquer doença provocada por esses abates e vendas directas. Passava o veterinário duas vezes por semana, analisava a qualidade da carne, carimbava e, não raro, confiscava as miudezas. Nunca soube se era por não estarem em condições, se era por ele gostar de fígado de ruminante. Facto é que a fressura poucas vezes ficava no talho...
Um era do ti Chico Miguel e outro do ti Zé Rolo. Objecto de discussão era muitas vezes o tempo que cada um demorava a matar uma rês e a esfolá-la.
Sempre vos digo, a talho de foice, que o nosso governo demora muito menos tempo a esfolar-nos... Mas adiante.
Foram várias as vezes em que um ia ver o Zé Rolo a matar e outro ia ver o Chico : marcavam o tempo. Passatempos um tanto brejeiros, mas na aldeia o que saísse da rotina era novidade. Nunca houve um vencedor definitivo.
Quem comprou o merino ao Vale Quem Tem foi Zé Rolo.
É Prazeres quem o vai levar à casa da Lameira e o prende à ferradura. A mulher arrancou ligeira e não era difícil ver que ia a chorar. O borrego chamava-a nuns més contínuos.
Zé Rolo era valente: basta que foi ele que, sozinho, debaixo do braço, levou o sino até lá acima à torre, porque a escada era e é muito estreita e só cabia um. Ficou nos anais aquela proeza. Costumava entalar os borregos e os cabritos entre as pernas, dar-lhes uma facada na nuca e depois sangrar. Nada disso podia ser com o merino. A força do animal, mais a mais sem Prazeres ao lado, para o acalmar, inviava tal desempenho.
O remédio foi atá-lo bem e TENTEAR bem a facada para que logo à primeira caísse redondo e se pudesse fazer dele o que se quisesse. De faca na mão, Zé Rolo espetou a faca na cerviz do merino . Este, ao sentir a picada, aventou tal escrito, que rebentou a corda, abala a correr e só pára na casa de Vale Quem Tem com a faca espetada.
Prazeres, ao ver o animal sangrado, com a faca espetada, começou aos gritos.
Ia eu a passar na ponte, com o já mais que famoso carrinho quadrado do gás, com uma bilha e uma saca de farinha 815 para o Chicharro atrás do cemitério, quando Zé Rolo vem esbaforido e: "apoisa aí a saca e a bilha e traz cá o carroço. Vem comigo." Eu não entendia a história.... " "Vá lá catano, preciso do teu carrinho e de ti." Pelo caminho lá se ia justificando: " Rais todos trinta ma partam... errei a puta da faca no borrego do Vale quem Tem e o cabrão abalou-me com ela espetado no cachaço".
Chegámos atrás da igreja e lá estava o merino a sangrar, ainda de pé, com espuma na boca.
Vem a Prazeres: "Já num levas o borrego Zéi", e Zé Rolo «Tens que me dar o dobro do dinheiro se te negas ao negócio» Aí, Prazeres refreou a zanga:"Desaparece-me daqui com o animal que não o posso ver assim, coitadinho. E era. O animal olhava para Prazeres: Traíste-me, vendeste-me,...
Zé Rolo arranca a faca do pescoço do animal, já um tanto enfraquecido pelo sangue perdido, e desta vez tenteou melhor e o animal caíu ali. "Pega aí desse lado. Agarra-lhe com ganas que ele é maciço. Tenteia bem a ver se o encaixamos no carroço logo à primeira". E assim foi. Tenteamos assim mesmo comédado e o animal ficou todo no carrinho. Lá o trago para o talho e apresso-me a levar a farinha e a bilha ao Chicharro. Sempre queria ver quanto pesava o bicho.
Tinha tal prática com o carrinho, que tenteava o peso e ele vinha na minha frente equilibrado nas duas rodas uns bons 20 a 30 metros, sempre na gáspia, que não queria perder o peso e o meu tio Zé Rolo precisava de ajuda para o pendurar. Cheguei à hora. Papei uma jeropiguinha da verdadeira e lá penduramos o merino na romana. Corre o pilão pelo varal e marca: 75kg. "Belo animal e tem aqui carne como seda. Mal empregado!»
Se não houvesse contrabando não eram precisas brigadas fiscais e se todos fôssemos cidadãos comédado nem polícia era precisa. Cada um de nós sabia o seu dever, cumpria-o e tudo havia de chegar para todos. Mas não. O nosso cérebro reptiliano e a natural agressividade que nos torna lobo do outro está sempre presente e a arte de fintar o outro dá-nos gozo e apuramos esta capacidade até aos limites da imaginação criadora. "O que esquece ao diabo alembra aos homens" já me dizia o velho Comandante.
Vem isto a propósito de que aquele borrego não era para ser visto pelo veterinário, era para ser vendido à sucapa, na candonga e já tinha pretendentes. Zé Rolo, no entanto, dadas as circunstâncias de meio povo saber do acontecido, receava que alguém pudesse bater com a língua para o veterinário... Ainda assim arriscou: meteu a pele num saco aparelhou a mula e foi pô-la na quinta do caminho das Águas, lavou tudo bem lavadinho esquartejou logo o borrego e não tardou já o tinha despachado.
Como não havia vistoria, sobrava a fressura. O lume estava aceso :« puxa aí o borralho para a ponta do lar e queima aí a grelha» Percebi logo a jogada. Foi limpinho: umas areias de sal para cima do fígado, uns alhos descascados, um cheiro de vinagre e um salpico de malagueta e oíoai, foi mesmo um ai. Mamamos os dois o fígado do merino, arreamos-lhe uns copos e uns nacos de pão e o pequeno almoço já cá morava. E bom.
Não restam dúvidas de somos os predadores dos predadores. Umas bestas. Com as devidas desculpas.
XXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIII. Logo volto com mais xendrices.

4 comentários:

António Serrano disse...

Mais um, digo, dois belos textos, para meu deleite.Que mais hei-de dizer???!!! Obrigado. Quero mais!!!

Anónimo disse...

Já pensaram em editar estes textos em livro. Eu comprava.

João L Oliveira disse...

Renasce novamente a procura pelo basagueda

Nuno Marçal disse...

Bons dias!

Cheguei a este belo estaminé de saberes,sabores e sensações através de uma conversa á mesa, diante de um belo repasto.
Logo que soube era da autoria de dois ex-professores meus, daqueles que figuram no quadro dos verdadeiros mestres que realmente são dignos de envergarem o titulo de professores não hesitei em fazer uma visita.
È de facto um blogue delicioso de partilha de linguagens e linguarejar que de outra forma se perderiam.

Fiquei adepto e voltarei com certeza.

Fica já agora o convite para visitarem:

http://opapalagui.blogspot.com/

Blogue sobre a minha experiência ao volante da Bibliomóvel de Proença-a-Nova.

Saudações Bibliotecárias-Ambulantes

Forte Abraço ao Changoto e ao Karraio

Nuno Marçal
Bibliotecário-Ambulante