sexta-feira, outubro 19, 2007

A NOSSA FALA - XCVII - GA(T)CHO

Tão linear quanto injustificável: um GATCHO é uma uva, ou, se preferirmos um cacho. A sonorização gutural profunda do G predomina sobre o C como acontece em Espanha... E como estamos na Raia, o resto é fácil: tudo o que se escreva com CH em vez de X tem obrigatoriamente de ser pronunciado de forma aspirada dando o nosso típico TCH. É assim em CHAVE=tchave; em CACHEIRA =catcheira; em BUCHO=butcho; em CHÁ=tchá e por aí fora.

Acontece que o tempo das vindimas já foi. Mas ..., Em tempos idos quem marcava as vindimas era a festa de Sta Luzia no Castelejo (Fundão) que se festeja exactamente a 14 de Setembro junto com Sta Eufêmia a 15. O pessoal já tinha muito figo seco, o cereal tinha sido malhado e arrecadado, as couves já cobriam a terra, as frutas já enfeitavam as salas e sentia-se aquele perfume a maçã BRAVO-MOFO (= bravo de esmolfe), que não raro servia de mata borrão para beber um tinto do ano passado já em limpo naqueles fabulosos garrafões de vidro revestidos a verga e encastrados em sustentáculos de ferro forrados a palha. O vinho tirava-se por cima com uma borraha e nunca se deixava retroverter por mor de não eludrar. Havia muitos e bons vinhos na aldeia. Ainda há. Eu, com era o distribuidor (quase oficial) do gás conhecia o provo de quase todas as adegas e havia algumas de que não perdoava o provo. Muitas vezes cedinho, logo às seis, pois então. Valia que a lasca do presunto, a cunca do queijo, a malga das azeitonas e o naco do pão vinham sempre para baixo e não havia nada como escorropichar pela goela abaixo um valente copo daquele néctar que fez com que Noé amaldiçoasse os seus próprios filhos: "sereis os escravos dos escravos dos vossos filhos". Vede o poder do tinto!

Os bons costumes vão morrendo com os seus praticantes... Ora, era costume, aos Domingos depois de missa, almoço já meio desfeito, grupos de homens juntarem-se e, em vez de ficarem no largo do Zé Rolo, no Adro ou na Lameira, no Batoco, a jogar ao fito, em vez disso, a malta juntava-se e ia de adega em adega, bebendo do bom, sempre com bu(t)cha, até horas de jantar. Assim, mesmo que houvesse algum peso na cabeça, a coisa não preocupava demais, enquanto que se se metessem no vinho da tasca e a apanhassem, era certo e sabido que no outro dia andavam VARIADOS. Ainda fiz algumas destas procissões. Não era raro que ainda permanecessem dependurados, por uma guita, alguns gatchos, quase sempre brancos, Uva Formosa, Arinto, Moscatel, de volta com algum Ferral que o oídio tivera perdoado. Os gatchos de "pendura" eram sempre cobertos por uma folha de papel, algumas mesmo bordadas com tesoira de costura. Era uma honra chegar com uvas comestíveis à vindima do ano seguinte.

Foi num desses Domingos - aquele era soalheiro - que eu, meu pai e o velho Comandante, mais o Tonho Alfácea, o Mné Furdas, sr. Jaquim Bargão (repare-se na diferença do trato) e Tonho Modas iniciámos a ronda pelo Alfácea, passamos ao Furdas e chegamos ao Sr. Joaquim Bargão. Entrámos na adega, a menina Isabelinha não tardou com uma travessa com comestíveis ao toque de um pau no sobrado, e enquanto se lavavam os copos - naquela adega havia excepcionalmente um copo para cada convidado - foi-se conversando da vida e de aventuras dispersas, desde a picadela dum alacrário até uma fo(u)nisca que se desencaminhou para o forro do Furdas e ia pegando fogo à casa...

Copos lavados, o senhor Joaquim Bargão convida a deglutir os opíparos acepipes e faz chiar a torneira da pipa (as torneiras rodam-se sempre no sentido dos ponteiros e é proibido que para se fechar se utilize o movimento retrógado, por mor de não estragar o calejo da madeira e possa ficar a pingar), rodou então a torneira, encheu o copo e oferece-o ao Modas: " beba o sr. primeiro, ofereceu-me a mim" eu sou o mais novo", passou ao Comandante "primeiro o dono da casa" chega-se ao Modas "Ná, a mim não me engana", estica a oferta a meu pai "cse nenhum pegou, eu tamém não" e escusado será dizer que nem Alfácea nem Furdas aceitaram a ser os primeiros a beber...
Senhor Joaquim Bargão insistiu:« ninguém quer beber este copo?» Nada...«Então bebo-o eu». E foi assim... Bebeu, foi à bacia, lavou-o e deborcou-o no tampo da pipa: «Vamos embora». Ficaram todos a olhar... «Em minha casa não preciso que mandem beber».
E o facto é que não bebemos. Acabamos por achar graça, fomos ao Modas, ao Comandante e ao meu pai e no fim o senhor Joaquim Bargão: «agora voltamos à minha». E fomos. Já ninguém recusou o copo à primeira e também já nenhum precisava de jantar tal a quantidade, variedade e qualidade do que se comeu... E digo-vos: apesar de já ninguém ter sede, nenhum se embebedou e podeis crer, que de todos os vinhos aquele era de longe o melhor.
Deixo-vos um XXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII. e prometo não voltar a andar tanto tempo arredado desta saborosa página.

2 comentários:

Anónimo disse...

Va atao a ver se cumpres a promessa!

Tamem eu bebia um tintinho e fazia um brinde a mais este saboroso texto, como so tu sabes cozinhar. Mas o filha da puta do tinto, custa aqui pra cima de 20 Eurios, ainda mai reles que o da tasca do xico!

Fico a espera da proxima ementa, UM ABRACO!

nabisk disse...

Pois é amigo changoto, não deve ficar muito tempo sem escrever estes belos textos que tanto nos fazem recordar tempos passados. Não somos da mesma aldeia, mas até parece que somos.
Esperemos pelo próximo.