sábado, julho 07, 2007

A NOSSA FALA - LXXXIX - BURRANCANA

A agressividade do ser humano, mau grado todas as formas de socialização de que foi sendo alvo ao longo dos tempos, é um fenómeno visível por demais para poder ser escamoteado. Há, desde logo, que reparar que é o único ser que consciente, voluntária e até, pasme-se, com prazer mais que requintado, agride, magoa, fere, tortura, mata,... É bicho esquisito este macaco pelado!
São por demais conhecidos os primeiros códigos que não visavam tanto o estabelecimento da ordem pública como pretendiam demonstrar quem detinha o poder e podia decidir da vida ou da morte: os códigos de Nabucodunosor e Hamurábi, o espartanismo, as ordálias, o Jus romanum, todas as formas hediondas praticadas pela Inquisição, para além dos requintes orientais em matéria de máquinas de fazer sofrer...
Hoje por hoje, se bem que algumas destas práticas ainda vigorem, temos outras formas mais sofisticadas de violentação, seja ela ocasional ou bem esquematizada.
A própria conceptualização alterou-se significativamente: ESTRESSE, BULLYING, BURNOUT, RUSTOUT,... É ver as nossas escolas a serem frequentemente vitimadas por formas diferentes de acosso ou assédio aos mais fracos, levando-os até a suicídio se o ambiente familiar não se apercebe do fenómeno e colabora na sua resolução.
Isto serve apenas para demonstrar que o baságueda não é apenas "Água baixa" ou basa agua. Quando lhe dá na bolha extravasa das margens e alaga tudo o que esteja no leito de cheia. Já Brecht:" todos culpam o rio que sai das margens e ninguém culpa as margens que o apertam"
Lembro-me bem de o meu primo "Escolinhas", o estoura vergas, vir das portelas com a sua bolsa onde se acumulavam a pedra e os ponteiros, o livro único, uma pedra aquecida, quando, no inverno, o frio exigia que as mãos aquecessem, preparando-se para as inevitáveis reguadas, e a merenda, pois claro que não dava para ir e vir durante o intervalo para o almoço. Tinha o Escolinhas uma merendeira de alumínio com duas molas laterais, onde trazia uns sólidos, tipo um naco de chouriça ou de morcela ou farinheira, uma presa de uma ovelha entretanto abatida, e às vezes a marmita vinha simplesmente cheia com caldo, daquele caldo com feijão, couve e massa. Uma maravilha, era o que era. A minha tia Natividade não deixava que o Escolinhas passasse fome...
O que a bolsa trazia sempre era queijo fresco. Não havia dia nenhum que um bom naco de queijo não fosse o complemento da refeição do Escolinhas.
As roupas afinadas que eram os "companheiros da Escola" do Estoura eram mesmo isso: roupinhas afinadas. Invariavelmente, coiote pete, contra-mestre, pitincouro ou até pinga ou portas, sapo ou bolas, filho do chico mai novo, e evidentemente esta vedeta que vos escreve, para além dos outros que agora não adianta enumerar, invariavelmente um ou mais que um, todos os dias, tínhamos que esborrachar o queijo ao Escolinhas. Era fatal. A irmã mais velha, a Lurdes, mulher brava, trabalhadora daquelas assim comédado, só lhe dizia: rais todos ta partirem...És mesmo um Burrancana. Fazem todos mangação de ti! tu não te envergonhas?! és mesmo um burrancana!"
Escolinhas, coitado, iniciava uma desculpa que de nada valia porque o vozeirão da Lurdes ecoava pela loja:« burrancana, que és um burrancana!»
A sala da escola estava organizada em função dos postos militares conseguidos em duelos de competências travados por nós todos através de desafios que tinham lugar nas quartas-feiras da parte da manhã. Assim, por exemplo, eu, que tinha sido sorteado para cabo, desafiava o brigadeiro que era, por hipótese, o Jolim da pata branca. Se eu ganhasse ficava com o posto de brigadeiro e o Jolim ia para cabo. Mas não ia de mãos a abanar: uma dúzia de reguadas dadas por mim e "que fossem bem puxadas" senão era eu quem as papava. Alguns que estavam a meio da hierarquia ficavam quietos mas o professor registava os combates e os postos e se eles não tinham a iniciativa era ele que os obrigava a digladiarem-se entre si.
Escolinhas nunca passou de sargento. Lá estava a Lurdes: «burrancana, que és mesmo um burrancana... tu num vês os outros a passarem-te a peneira? inda hás-de ficar no tinteiro, meu burrancana!»
O desgraçado lá ia a ordenhar as ovelhas com o velho Jerónimo, irmão de Tonho da Aldeia e já noite cerrada, em cima do arcaz do trigo, é que fazia as cópias e os mais trabalhos à luz de uma candeia de torcida curta que o ti Domingos e mais a Ti Natividade já estavam entre os cobertores e luz era coisa que não queriam... Mais a mais era preciso poupar.
Mas não... Escolinhas não ficou no tinteiro e, no exame, em Penamacor só trocou os afluentes do Sado, dizendo que os da margem direita eram os da esquerda. Também que interesse tinha? Se calhar ainda nem hoje o Escolinhas, que vive agora no Canadá, alguma vez viu o Sado e nem o Mira, o Xarrama, o S. Martinho e o Marateca. Era asssim e mainada.
Agora o que eu espero é que vós que me ledes não sejais burrancanas e vos espalmem o queijo dentro da bolsa.
Lá que vos queiram ir às nalgas, isso ... agora que sejais vós a pôr a manteiga!!!!
Toca a abrir os olhos e a ver se ninguém fica no tinteiro nem é burrancana.
Força! que o futuro está sempre à frente e eu já tenho saudades dele.

7 comentários:

Anónimo disse...

Nestes meus dias claros de boa vontade, em que um sentimento de mudanca me precorre as veias, o coracao sente e altera o ritmo como se o tempo tivesse parado, apagando o presente e transformando esse verbo, neste futuro em que agora me sento e descanso, dia apos dia.
Agora julgo entender as tuas saudades do futuro, caro amigo Changoto. A palavra destino consegue ser explicada de mil maneiras, aqueles que pretendem ser racionalistas desdobram-se em explicacoes mais ou menos sensatas, eu por outro lado, prefiro tentar perceber o destino em antevisao, sem deixar de ser destino, fica claro que quaze tudo foi feito por mim consciente ou inconscientemente enquanto me preparava pra ser futuro. Vem este palavreado todo em jeito de confidencia, pra vos dizer que admitindo nao ser eu, gajo de grandes exigencias, gostava de vos dizer que o destino recente me tem sorrido e o futuro parece risonho, ESTA DITO! sera que estou apaixonado? umm...

No que respeita ao Basagueda, parece-me por demais evidente que nao nasceu para ser rio de aguas baixas. Os rios que crescem de boas nascentes jamais deixam de ir ter ao mar. O basagueda nasceu de duas boas nascentes, Karraio e changoto, com a missao de tornar ferteis os campos que inunda em cada primavera, por isso, como acontece com a planta do arroz nestas paragens, todos ficam a ganhar quando as margens nao apertam o rio.

Anónimo disse...

Leio os textos do Baságueda há muito tempo, apesar de não
fazer comentários, todavia este parece-me tão belo que achei ingratidão não deixar registado o meu apreço!! Está entre os meus preferidos!

Anónimo disse...

Esta forma engra�ada e popular de "nomear" as gentes j� aqui foi muitas vezes temas de Changoto e Karraio . Quer seja pelas alcunhas que se atribuiam quer pelos nomes que n�o chegavam a ser insultuosos , estes tinham sempre uma sonoridade muito particular e , eu tenho gostado da forma como neste blog t�m feito a recolha de palavras um pouco já esquecidas como :
Paspalho - Taboubena - Tramonco - Pasmona e agora esta...Burancana e se fazem textos t�o engra�ados e com qualidade.

Anónimo disse...

Mestres do pensamento popular beirão, poetas virtuosos , levam ao "palco situações" do passado com linguagem de outrora . memórias extraordinárias pelo varejo das histórias impregnadas de humor "rural" ,do burlesco local , do sarcasmo ,dos amores e ódios, das cantorias, músicas, piadas locais e textos com sotaque "xendro" .
Donos de um estilo semelhante e diferente sumultaneamente, Changoto e Karraio são "domadores de palavras e situações do antigamente mas que iniciao geralmente os textos no Sec 21 recuando depois numa sempre risonha analepse cheia de preciosismo linguisticos e personagens que nos fazem ter ....e aqui ao contrário do que diz Changoto ...o futuro pode estar à frente ..mas acontece-me ter saudades do passado .É bom voltar ao passado desde que não se fique lá a demasiado tempo......

Anónimo disse...

Ainda bem que o amigo Lapachero nao e forreta no tinteiro, como pelos vistos, a maioria dos leitores. Percebo o teu ponto de vista amigo, mas sem esquecer que pra frente e que e o caminho, um fuerte abrazo.

Nao sejam tao forretas alminhas, escrevam, mesmo que cometam erros de proposito podem dizer que foi sem querer, vao ver que so doi a primeira vez!

Anónimo disse...

Va-lá Catrino ...Tenham genêtes

nabisk disse...

Palavras para que? São dois grandes artistas.Marecem o incentivo de todos para nunca perderem a vontade de escrever textos que nos fazem recordar palavras que pensava eu que só se usavam na minha Aldeia.
Parabens e um abraço Raiano