Às sete da manhã nevoenta
De 30 do mês do Natal
Saíram de casa, com pêlo na venta,
Os constituídos para dar cabo do animal.
A equipa é mais que distinta,
Moca, nosso Fernando, nosso Zé,
Karraio, e Changoto da quinta,
Gaducha, Chaves e um Sardones até.
Ali bem perto, às Poldras
Junta-se à trupe o Zé Caçador,
Grita: "Já cá levo as cordas",
E acelera forte o seu tractor.
Chegados ao local de abate,
Aguardente fraca, pouco adoçada,
Nozes e figos secos como contraste
Iniciam a valente almoçarada.
Apresentam-se as armas à porfia:
Fusis, navalhas, serrote e machado,
Pedras, maçarico e até um fio,
Mais a banca para o condenado.
Muda-se a farda, calça-se a bota,
Entra-se na furda, separa-se o tó,
Ata-se-lhe a pata, empurra-se prá porta
Cada um sua sentença, afaga-se com dó.
O animal já habituado ao aposento,
Recusa-se a percorrer o caminho...
E então que num momento
Se lhe aperta um arame ao focinho.
Com três a puxar e quatro a empurrar,
O malhado lá passa a porta do curral.
Os outros, todos a ver, acabam de ralhar
E acompanham os algozes ao tribunal.
Diz um:"passa-lhe a corda por baixo"
E outro:"vê se me tombas o animal"
"Cala o bico senão inda te racho
Pega-lhe no rabo que não te faz mal".
Ao fim de uma boa meia hora
(vergonha das vergonhas em matança)
Lá conseguem tombar a alimária.
Podia finalmente começar a dança!
"Vá lá!" diz o mestre, "todos ao mesmo tempo,
Um dois trê..."espera aí que me vai escapar"
Aguarda-se então um breve momento,
E, depois, então, foi só levantar.
Poisa-se o volume ao comprido na tábua,
Puxa-se a jeito, compôe-se a faceira...
Logo um traz um balde de água,
E o matador pega na matadeira.
E foi um "ai...", logo à primeira,
Enterrou a faca, tirou-a e ficou a olhar
O animal a grunhir, a ferida que fizera,
O sangue a correr em bica para o alguidar.
A colher de pau não parava no barro
Sempre a dar-lhe para não coalhar.
Metia-se a mão, sacava-se o tarro,
Comentava-se a facada sempre a segurar.
"Põe-te a pau que ele vai esticar"
Aconselhava o que pegava a orelha.
"Olha o esperto", diz o do traseiro a brincar,
"Vê lá se te foge e te chamo azelha."
"AtençãolAtenção! Vamos lá a preparar."
Clama o matador a ver a brincadeira!
"Não estive eu aqui a aprumar-me
E ficar envergonhado por uma asneira."
Ao fim de uns bons esticões
Lá se ficou o porco, sem bulir...
Limpa-se a barbela, dão-se uns apalpões!
Desatam-se as cordas! Começa-se a sorrir.
"Arre porra, ninguém quer mecha!"
Diz o que segurava a pata dianteira.
"Um homem tem mesmo que fazer queixa:
Não há um copo! Só querem brincadeira."
Ouve-se então alguém a vir,
Viram-se todos para o portão.
Era o Barrocas campeão a tossir
Que já trazia o cigarro na mão.
"Vá lá, chegou mesmo à hora.
Tínhamos deixado molhar os palitos,
Mas não temos que nos preocupar agora,
Já temos quem acenda o maçarico."
Sorriso largo, fumarada solta,
Calmamente se aproximou.
Com a mão a todos deu a volta,
E foi ele que em vedeta se tornou.
Iniciaram-se piadas de caserna,
Até que se ouve uma voz tonitroante:
"Isto aqui é alguma taberna?
Assim isto não vai p'ra diante."
"Tens razão" comentam os conjurados
"Vamos mas é ao que interessa
Daqui a pouco estamos gelados
Por nos pormos a olhar aquela peça."
Foi assim que o maçarico se acendeu
E se chegou o lume à ferida.
Na agulha uma guita se meteu
E pouco tardou, estava já cosida.
"Vamos lá mas é a pôr ordem nisto"
Ditou o Barrocas então chegado
"Mas haja cuidado por Cristo
Qu' algum inda pode ficar queimado."
"Bem falado, então isto é assim":
Vocifera alto nosso Fernando.
"Um aqui sempre atrás de mim
Que eu dou-lhe lume brando."
A chama do escaldante queimador
Sempre orientada no sentido sul
Implicava atenção ao calor
Pois até já o bocal estava azul!
Lá se ia chamuscando, primeiro atrás,
Logo à frente, depois a barriga,
Sempre um a dizer como se faz
E em latim se inicia uma cantiga:
Infelix animal es, suine ora mortue,
Ut augeas ventres omnium scholarium
Dolore maxima, duces saevi, impiique
Te damnant, etiamsi sis sordidum.
A música é depressa por todos adoptada
Sai um coro afinado, sem maestro.
Apesar de não perceberem nada, nada,
Entravam bem na melodia, mesmo a estro!
E o porco lá ia, com jeito, sendo queimado
Sempre atrás do lume ia o raspador.
Em breve ficou bem pronto dum lado,
Aquilo é que estava a ficar um primor.
"Eh! Malta! Está na hora de ser voltado."
Logo todos se apressam para lhe pegar
Primeiro de costas, o lastro breve assoprado,
Depois com jeito e arte foi só virar…
"Vá lá a ver quem sabe arranjar o focinho",
Aponta o Gaducha ao vê-lo ainda por fazer
E logo um se lhe atalha ao caminho:
"Isso já toda a gente sabe quem há-de ser".
"Ouve lá, ó meu basbaque de tanto saber,
Inda não tiraste as mãos das algibeiras
Sabendo que há muito por fazer
E pões-te a dar sentenças brejeiras?"
Uns riam, outros acenavam que sim senhor
Mas lá acabaram por concordar:
A cabeça pertencia ao matador.
E lá teve o desgraçado que se baixar.
"E o rabo! Quem faz o rabo a preceito?"
E viram-se todos para o Caçador
"Eu cá não tenho qualquer jeito,
Haja alguém que faça o favor."
É agora a altura das carchanolas,
Unhas para os que são ignorantes
Queimam-se bem pois parecem solas
E brinca-se com elas como dantes.
Aquele que as tira, finge que as aventa
Mas guarda-as, bem guardadinhas
E metê-las nos bolsos é o que tenta
Das pessoas que estão mais vizinhas.
Os que dão conta, empurram-no com força
E ele aconselha-lhes alguma calma.
Calado, salta para outro como uma corça
Senão não dá descanso à sua alma.
Dá a volta e no que estava mais distraído
Lá enfia, por fim, a sua encomenda
Afasta-se aliviado e descontraído
E atenção aos outros recomenda
Todos, sem à partida fazerem referência,
Vão sempre guardando a rectaguarda.
Não fiquem eles com a indecência
De as levarem consigo na farda.
Enquanto tudo isto se passava
O cerdo ia ficando como novo
Barbeado conforme a navalha passava
Já quase se podia mostrar ao povo.
Apaga-se o maçarico já desnecessário
Grita-se por água rápida e com fartura
Procuram-se pedras de natureza vária
Inicia-se a lavagem à bacorura.
Nosso Zé, com muita jeiteira
Segurava a mangueira numa mão
Na outra, regava com uma cafeteira
A medida que se fazia o raspão.
Trabalho, trabalho, tinha o matador
A limpar as rugas daquela tromba:
Escarafunchava com raiva e vigor,
Estoirava como se fora uma bomba.
Já bufava e as mãos se lhe engadanhavam
Quando repara que faltavam as orelhas.
"Uma esfregadela era o que precisavam
Os que aqui passaram, os azelhas."
E exclama: "quem me traz sal grosso
Para vos ensinar como se devem limpar
Estes abanos às vezes rijos como um osso"?
Prestes, Karraio, logo lho foi buscar.
E preciso agora fazer-lhe bem o cu
De maneira que não se fira a tripa.
Resta saber quem será o gabirú
Que a tal trabalho se dedica.
Vê-se um, disponível, a sacar da navalha.
Tal disponibilidade a todos espanta
E quando ia a iniciar aquele trabalho:
"Eh! pá!, olha que é preciso tirar a trampa."
"Mau..., ainda ninguém teve fome?"
Diz um que andava com a perna manca.
"Olhem que até à uma ninguém come!
E servirem-se já da morcela da banca!"
Logo em resposta ouve o que pedia
"Galinha que canta é a que põe ovo,
Já era assim que o meu avô me dizia,
Come-a tu e diz-me que tal é o provo."
"Vai mas é buscar um bom nagalho
Enfia-o aí até ao fundo da abertura
Torce e puxa para ti, ó meu bandalho,
O que conseguires sacar da ranhura."
"Tem tento nessa língua, ó depravado,
Senão ainda limpo a essa linda cara
Aquilo que vier a ser o resultado
Da sonda que ainda há pouco enterrara."
Tão amena conversa se ia travando
Era tão boa a disposição de toda a gente
Enquanto no traseiro se ia cortando
Que ninguém se lembrou da água quente.
"Se isto vai continuar assim, desta maneira,
Digo-vos que ponho os pés a caminho.
Vamos lá acabar com a brincadeira
E ver se alguém me traz um copo de vinho."
E continua, alterado o grande artista:
"Tu, ó Faz-Nada, acadeja-me água quente
E vê se deixas de te armar em fadista
E te portas de modo a seres gente
"Porque é que logo me viste a mim
Que estava aqui tão sossegadinho
Toma mas é um raminho de alecrim
Que te faz muito melhor que o vinho."
Valeu à circunstancia que o Caçador
Ali apareceu com aperitivo e garrafão.
Assim, lá se acalmou todo o vapor
Da zanga que estava a ruinar a sessão.
Já com o chambaril o Moca aparecia
E os nervos das traseiras se revelavam
Há já muito tempo que se não via:
Todos com o transporte se preocupavam.
Uns apareciam com sacas de serapilheira
Outros com varapaus como fueiros
Cada um defendia a sua maneira
Tudo se acalmou e lá foram ligeiros.
A roldana e a corda tinham sido aprontadas
À entrada da porta alguma dificuldade
Tardou -os na sua pressa danada
E tiveram que refrear as ganas da vontade.
Já dentro da loja debaixo da viga
Engata-se a corda, eleva-se o animal.
Um sobe ao banco, faz uma figa
Dá um nó de modo que não fique mal.
"Pronto, já está, podeis deixar o bicho"
Devagarinho lá o foram baixando
O gato sapou para o seu nicho
E o material preciso se ia preparando.
Surgem alguidares, travessas, pratos
E logo: "Então, mas afinal isto o que é?"
Mais me pareceis uns grandes ratos.
Haja alguém que vá buscar um café.
Abre-se o ventre agora escancarado
Com golpe ao centro pouco profundo
Não tardou que o cutelo bem afiado
Trouxesse o corte direito até ao fundo.
Volta ao cimo e, com os dedos em V,
Abre caminho ao bico da navalha
As tripas logo toda a gente as vê
E traz-se o tabuleiro que as apanha.
Agucei então umas sovinas de esteva
Para o porco poder ficar largo a secar
E disse. "Atenção, daqui ninguém o leva,
Sem a carne estar boa para se cortar."
Entretanto, o cheiro de um fígado a assar
No borralho, que ficara sempre aceso,
Anima o corpo, que já estava a ficar
Devido ao frio, um pouco teso.
Então, sem que ninguém o veja
Changoto inicia a sua faena culinária:
Já tinha limpo das tripas a molareja
e agora limpa as glândulas da alimária.
Num tacho já frigem dentes de alho
Em azeite fino da bela oliveira,
Juntos com louro e um famoso molho
Que é criação da sua alta craveira.
A chicha, cortada em nacos valentes
Entra logo com a pimentada caseira
E todos com a fome afiam já os dentes
A contar com a cheirosa petisqueira.
Boné na cabeça, avental a preceito
Atento ao fogo, à trempe e ao tacho
Vai deitando vinho, sempre com jeito
Não se agarre a comida com o fogacho.
Dá a provar o molho de vez em quando
E cada um apruma o seu paladar
Ajusta-se o sal, corrige-se o picante
Envolve-se o entulho, fica-se a esperar.
Sai fumegante o tacho com o petisco
Cada um pega a sua arma na mão
Estava já um prestes a morder o isco:
"Vê lá se reparas que tens aí um pão."
Célere recolheu o braço atrevido
Mas os compinchas não lhe perdoarão:
"Tu, ficas a saber que já estás cozido
Ficas encarregado de servir do garrafão."
Lamuriento, teve de aceitar o seu destino
Ele que tanto gostava de dar ao dente
Até que deixasse atestar bem o papinho
Tinha agora que comer atrás da gente.
Pouco tardou estava o barranhão aliviado
A rapaziada dirigia-se já para junto do sol,
Quando de repente se ouve um alto brado:
"Cada um lave o que sujou, enquanto está mole.
Muito a custo lá foram até junto da torneira
Esfregão, pano, água e, claro, detergente
Deixaram tudo a brilhar na cantareira
Ficou a dona de casa toda contente.
Faltava agora descer o defunto esticado
Alarga-se o nó, deita-se sobre a padiola
Leva-se até ao veículo para ser transportado
Até junto dos qu' aguardavam junto da Escola.
A viagem correu sem qualquer acidente
Já todos traziam um lavado fatinho.
Na presença de quase toda a gente
Eleva-se até ficar bem, com jeitinho.
Finalmente, de novo fica o cerdo exposto
Já a lenha seca ardia na metade do bidão
Pouco faltava pra qu’o que lá estava posto
Não tardaria, estava feito em rubro carvão.
Cada um para o talho então se dirigiu
Cortava onde podia, apetecia ou conseguia.
Azelhice tamanha em muitos então se viu
Mas nem por isso arrefeceu a alegria.
3 comentários:
Aviso à navegação: esta acta foi originalmente publicada no Boletim Informativo da Junta de Freguesia de Aldeia do Bispo, nº 2, Natal de 2000.
Republica-se agora com alterações pontuais.
Não se importam, pois não?
Eu não me importei nada! Até porque não tive oportunidade de ler a versão original...
Está deliciosa esta descrição "rimada" da matança. Com todos os pormenores desta tradição que, face às regras comunitárias e outras, está a desaparecer. Até as "deixas" do costume não são esquecidas.
Muitos parabéns pelo "Baságueda", que não tenho acompanhado com a assiduidade que gostaria, mas ao qual dou uma espreitadela sempre que posso.
Desejos de um óptimo 2006!
Corroboro Amigo Lapaxeiro. Mas a inspiração quase á velocidade da luz, do Amigo Changoto, bem como o facto dos comentadores se terem habituado a comentar apenas o último Post, ou o do momento da visita, assim justifica. É importante dar uma voltinha semanal, pelo menos, pelos Posts da página Inicial.
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