segunda-feira, junho 13, 2005

A NOSSA FALA VIII - MANGAÇÃO


Naquele tempo, havia bailarico todos os domingos. A par da missa, o bailarico era o evento social mais importante na vida da aldeia. A diferença estava nos protagonistas e nos propósitos: a missa servia (também) para algumas senhoras e alguns senhores exibirem os seu estatuto e posição; o bailarico funcionava como o espaço, por excelência, para a juventude desenvolver as suas estratégias de escolha do cônjuge, eufemismo para significar ritual de acasalamento aplicado aos humanos num contexto social rico em moral católica, logo, em valores repressivos e em tabús .

Era no espaço público do bailarico que era permitido aos jovens casadoiros fazer aquilo que lhes estava absolutamente vedado noutro espaço público qualquer e que hoje são banalidades: roçar o seu corpo no de uma rapariga. Eram momentos únicos. Ali, e só ali, a sensualidade podia rondar os limites do socialmente aceitável. Ali, e só ali, o garboso mancebo podia abraçar a sua formosa donzela, encostar o seu peito ao dela, sentir o toque suave do seu cabelo, cheirar o seu perfume e, sublime, esfregar leve, muito levemente, a sua cara na dela e até, ousadia plena, roubar-lhe um beijo. Tudo sob as barbas da progenitora. Tudo a pretexto de uns rodopios em conjunto.

O espaço da sala estava dividido em três sectores bem distintos.

O do meio era destinado à dança propriamente dita, durante a qual machos e fêmeas evoluíam agarrados um ao outro em movimentos mais ou menos padronizados e sincopados, ao ritmo da música que era posta a tocar num pequeno gira-discos de vinil, saindo o som por duas cornetas dependuradas no tecto.

Um segundo sector, localizado ao longo de uma das paredes laterais, era ocupado pelas fêmeas, sentadas em bancos de pau corridos ou individuais. As mais novas estavam habitualmente acompanhadas pelas progenitoras. Todavia, as investidas dos machos dirigiam-se exclusivamente às fêmeas não acasaladas, no respeito escrupuloso pelo princípio monogâmico. As progenitoras, neste quadro, cumpririam essencialmente uma função específica de protecção e de vigilância de eventuais comportamentos desviantes, face aos padrões socialmente reconhecidos.

Um terceiro sector, localizado mais próximo do bar, era ocupado pelos machos, aglomerados, em pé – era muito raro ver um macho sentado -, habitualmente munidos de um copo, garrafa ou cigarro. Provavelmente porque estes acessórios estavam associados a uma postura masculina, não era comum observá-los nas fêmeas. A ingestão de álcool e o travo do fumo do tabaco, publicamente, seria até factor de estigma quando praticado pelas fêmeas.

Logo que o velho gira-discos começava a debitar a música que saía roufenha nos altifalantes de corneta, algumas das fêmeas juntavam-se aos pares a dançar, outras permaneciam sentadas. Todas aguardavam a investida dos machos. De notar que esta exposição aos pares não era, nunca, utilizada pelos machos. Aliás, é de crer que o rótulo estigmatizante seria mais penoso para dois machos a dançar juntos do que para uma fémea a fumar.

Se a escolhida estava sentada, o macho tinha de se sujeitar ao olhar grave da progenitora quando se lhe dirigia e perguntava:

- A menina dança?

À inquirida assistia a faculdade de aceitar ou recusar. No primeiro caso, ela entregava-se então ao macho que a enlaçava pela cintura com o braço direito. Nunca com o braço esquerdo. Se a fêmea entendia recusar o convite, o que poderia querer significar que aquele não seria o seu desejado para eventual cônjuge, o macho estava obrigado a aceitar a sua vontade sem ripostar. Tecnicamente, classificava-se a situação como uma tampa. O macho deveria então retirar-se obedientemente, podendo ir apagar o sorriso amarelo no bar, deixando espaço livre para outro macho tentar a sua sorte junto da mesma fêmea.

Outra situação possível era se a fêmea desejada já evoluía no sector central acompanhada por outra fêmea, o que levava o macho interessado à necessidade de concertar a abordagem com outro macho:

- Ó Tonho, vamos ali a tirar a Rita e a Celestre? Eu fico com a Celestre – desafiava o Manel.

- Está bem.

O Manel ficava sempre com a Celestre. Há muito tempo que toda a gente sabia que o Manel queria a Celestre. Talvez por isso, ninguém ia tirar a Celestre.

Mas os tempos, eles estavam a mudar.

Naquele domingo de Junho, por conta dos feriados, o salão estava a abarrotar com gente da terra, e gente de fora, o bar esgotava o stock de vinho, gasosa e cerveja. Tinha acabado de tocar uma música nova, com um ritmo forte, diferente das batidas habituais, trazida pelo Paulo que estudava em Lisboa, em que o cantor repetia aos gritos “I can’t get no”. Virado o novo single o cantor, mais calmo, parecia agora gemer: “Angie”.

- Ó Strudes, qu’arrai de modas eles põem pr’ali. No gosto nada destas modas. Só sabem berrar e bater c'os testos das panelas.

- Tamém no gosto nada. As modas do nosso tempo parece qu’eram mai alegres.

O Manel, rapaz rude e conservador também não apreciava estas novas modas, nem ele as sabia dançar. Ainda por cima, estava de olho no russo de cabelo penteadinho que já por duas vezes se tinha adiantado e roubado a sua Celestre.

A música que agora tocava era um slow, um estilo relativamente novo mas bastante apreciado porque macho e fémea podiam dançar muito juntinhos um ao outro quase sem sair do mesmo sítio. O penteadinho adiantou-se mais uma vez e foi pedir a Celestre para dançar. Ela hesitou mas acedeu. O Manel, que chupava vigorosamente o quarto cigarro seguido apagando-os todos a meio, sentia a sua reputação em perigo. Até ali, tinha aguentado com dificuldade os olhares inquisidores dos seus companheiros habituais. Não podia permitir aquilo, muito menos de um penteadinho que nem sequer era da terra. Incentivado pelos companheiros que tacitamente lhe guardavam as costas, dirigiu-se decidido ao par e enfrentou a “sua” Celestre:

- Olha lá, mas tu andas a fazer MANGAÇÃO de mim?

O penteadinho franziu o sobrolho, olhou para ele e atirou altivo:

- Olha-me este Chaval! desampara-me lá a loja ó bimbo.

O outro não teve tempo de se suster porque o Manel foi lesto a agarrar-lhe o pescoço com a mão esquerda e a tombá-lo para trás por cima da perna direita, caindo com ele no chão de cimento.

- Ê tchapo-te já a alma mê cabrão.

Dois companheiros do penteadinho aprontaram-se para o ajudar, mas foram travados pelo Tonho e por mais 4 patrícios. Cegamente, tombaram-nos e pontapearam-nos, revelando-se inúteis os gritinhos e estranhos gestos que um deles fazia com as mãos hirtas e a cruzar repetidamente os braços. Num ápice vinham já a correr mais 3 amigos do penteadinho que estavam encostados ao bar, barrados dois pelos irmãos do Manel, rasteirado o outro pelo primo. Generalizou-se entretanto a distribuição de murros e pontapés. Alguém pegou num banco de pau e arremessou contra alguém. De imediato se viram mais bancos no ar. As fémeas fugiam apressadas no meio de gritinhos histéricos. Os machos soltavam livremente impropérios e imprecações.

Das cornetas dependuradas no tecto continuava a sair uma espécie de gemido:
“Angie”.

13 comentários:

Anónimo disse...

Este ritual do "engate" até que era mais divertido e interessante...os homens eram verdadeiros machos, tal qual um par de veados que utilizam a sua "parelha" para adquirir direitos sobre uma femea...., as mulheres...coitadinhas ali ficavam à espera que algum macho as fosse convidar.... mas agora pergunto eu, como raio havia tanto garoto que nascia antes do tempo, se eles só dançavam, tu queres ver que existe outra forma de fazer garotos !!!!

Anónimo disse...

baile que se digne de tal nome tem de acabar com "porrada", aposto que a Celestre acabou por casar com o gajo...nada melhor para ter lá em casa a protegê-la.... tenho é pena do penteadinho, deve ter tido uma trabalheira para voltar a ficar todo arranjadinho.......aposto que não voltou a ouvir "Angie" !

Anónimo disse...

Muito engraçada esta história, até porque ainda agora os bailes da nossa terra têm algumas semelhanças, os gajos no bar, as gajas a dançarem umas com as outras.... as progenitoras e afins a "guardarem" não sei o quê.... também houve mudanças, evolução.....as gajas já fumam e os gajos no fim da noite já dançam uns com os outros......e para não fugir à tradição, como já alguém comentou não falta a "porrada", eu diria mais uma luta de galos sem penas !!!!!

Anónimo disse...

Povo que trabalha e que reza, povo que ama, que folga e se diverte. Após garantir o sustento, após orar e agradecer à divindade, o rural dá largas ao seu ludismo, expande os seus impulsos amorosos, entrega-se à diversão e à folia. Refiro-me agora já não à festa institucional, quase sempre religiosa, mas fundamentalmente à diversão do dia-a-dia, dos pequenos acontecimentos locais e particularmente aos bailes e às danças populares. Este tipo de bailes ocorre habitualmente também nas romarias, mas o fenómeno, por ser mais vasto, justifica um tratamento especial.
Assumindo até certo ponto uma função de escape ao quotidiano da aldeia, o «bailhe» ou «balho» tem, no entanto, como objectivo essencial, a aproximação entre os dois sexos e é, por isso, momento apetecido pela mocidade. Desde sempre, aliás, assim foi e, exceptuando as danças rituais, todas as danças populares tiveram e têm essa finalidade. Função, de resto, socialmente importante nas comunidades rurais, muito fechadas e pouco permissivas, onde a pressão social se fazia sentir, até há poucos anos, com acentuado rigor.
Obrigado pelo presente da lembrança Karaio.

Anónimo disse...

Desta vez alguns comentários empataram em qualidade com o texto È novidade e um optimo sinal.

Anónimo disse...

Eu acho que o changoto "quiz" dizer para quem o ainda não conhece, que ele é da terra, mas a Culpa não foi dele! Alguém lhe pediu ajuda, não sei porquê? Eu fazia o mesmo, mas primeiro, mostrava-lhe o PANÊLO. E depois já não tinha que explicar, tipo, o I antes do L, Nada sobre esse coozinhado soberbo, claro que eu não sou gago, mas o assunto também não tem nada a ver, mas eu é que sei como é que é depois. Eu é que sou a vitima. Há Há Há! Ta bém quem quiser que ponha o acento, não é necessário eu encarrego-me!
mas qual assento; Há Há mas tás parvo ó qûe? Há duas horas que não vejo um Ventil.
Estava como só voçês sabem, a falar com môçemeçês, lembro-me daquela min, que o tonho, me deu mas depois não me lembro de máis nada...

Anónimo disse...

Este relato, qual documentário da BBC-Vida Selvagem realizado por David Attenborough, transportou-me à savana africana no decurso de um ritual de acasalamento. Gostei!

Anónimo disse...

Guga huga buga

Anónimo disse...

Não tenho nada contra os anonYmous, em qualquer dos casos. Mas levem a mál "fazeisme" lembrar, os menos cinquenta no Um Contra Todos!

Anónimo disse...

Nós as vezes tambem nos engana-mos, mas ainda por cima áte nos engana- mos a dobrar ás vezes até, máis, eu sei que sou at é um gajo enjoatívo. Mas a Net dá-me esse privilégio! TÁVA a goumitar, e eu detesto, por essa virgula. Bem são os >Dárit "!Dáiystraites". É tão simples quanto isto, a minha piada sem "comas" não era para os com. deste Post. Gosto de por os Pontos, nos ÌÌÌ. Ás vezes fica-mos "bloquiados" máis uma, piada FOLEIRA, mas na verdade não me queria referir aos AnonYmos deste Post.

Anónimo disse...

Nas discotecas não é assim, pois não? Quer-me parecer que com o barulho das luzes a malta nem se vê, só se apalpa.

Anónimo disse...

Pois é. Nada como um bom blog (o melhor de todos pra mim) para entrarmos sem ifem nos Eixos, ó "Anonimo".

Anónimo disse...

Quero ir mãis longe, que de lixe o tilt.. e o u já está! Bem não há muito tempo, talvez quatro meses. Na Capital estava eu e o meu mano Vitor, ele a botar faladura sobre assunto sério com "inferiores" "Patenta Inferior", E vái eu num momento de reflexão, a fazer achega! ouve lá aquilo que disses-te tem a ver com aquilo, que por sua vez vai naquele sentido. O mano respondeu-me de forma tranquila, ele e pra mim também, eu também séi isso, Fiquei Inchado, o meu mano tem isto no disco. Depois concluiu, pra mim e só pra mim, mas nesta prespectiva é assim, mas claro tens razão e não sabia aquele pormenor, que me disses-te agora. Para dizer que o meu Irmão mais novo, já não me segue, já tem um caminho só dele, claro com ADN. Infelismente, temos tudo em comum, até o Benfica. Mas cada um vive os golos á sua maneira, menos quando estamos juntos. Isto tudo pra dizer que este Blog só tem duas Hipoteses, com o Changoto e com Lapaxeiro; o Changoto, vive de forma maravilhosa, na "alegoria", o Lapaxeiro, ainda quer mudar o Mundo, não sei se é o legivel ou o outro? Mas gosto dele quando vem da "Caverna" vem Cheio de vontade e Barriga Cheia de bons Conselhos, que também eu gostaria de ter. Mas depois quero que ele seja máis lapaxeiro, porque tem máis dele, no entanto continuo á espera!