Garoto do meu tempo tinha medo da côca. Os mais velhos ameaçavam com a côca para garantir que as naturais traquinices da criançada não ultrapassassem os trambelhos.
Tenho para mim que um dos primeiros conceitos que uma criança constitui é o de justiça. De facto se se lhe aplica um castigo, às vezes até excessivamente severo, por uma asneira que cometeu, ela suporta, esforçando-se por conter as ganas que tem de chorar, por exemplo; mas se o castigo que se lhe aplica, ainda que leve, não resultar de um acto que não seja da sua responsabilidade, aí, ela barafusta e não esconde a sua revolta.
Deixo-vos dois exemplos famosos que ilustram o que referi: o primeiro acontece no filme de François Truffaut - O Menino Selvagem - em que Victor, a criança encontrada na floresta e que não tinha comportamentos típicos de um ser humano, é injustamente metido no quarto escuro devido a uma falha que não cometera. A sua reacção deixa o professor Itard perplexo, dada a sua exuberância, acrescido do facto de pela primeira vez chorar. O segundo é narrado pela mulher do pastor anglicano de Sijn, na Índia, que também recolheu duas meninas a quem deu os nomes de Amala e Kamala e que em tudo imitavam os comportamentos da loba que as afilhou e que só as deixou partir porque a mataram. Na tentativa de conseguir um relacionamento mais próximo e de tentar que se fossem aos poucos humanizando, a mulher do pastor deu um bolo a cada uma delas, fora da hora do lanche. Como é sabido a tradição inglesa - a Índia era ainda a jóia da coroa - quase impõe que às cinco da tarde se beba o chá. As crianças da creche para onde as irmãs tinham sido levadas tinham, cada uma, direito a dois bolos e à respectiva chávena de chá. Quando o cesto com os bolos passou por elas, cada uma tirou apenas um bolo e por muito que insistissem para que tirassem outro, elas recusaram. Como já tinham comido um, não tinham direito a dois.
A questão de chamarem selvagens a estas crianças é muito discutível. Lévy Bruhl afirma mesmo que elas sofrem de uma mentalidade pré-lógica, tese contra a qual se opõe Lévy Strauss que defende que as crianças têm uma lógica própria e rejeita a defesa da mentalidade pré-lógica substituindo-a por mentalidade pré-científica. Eu vou por aqui.
O senso comum, esse saber que alguns menosprezam, pode não ser coerente, nem congruente, mas tem uma lógica. Pode contradizer-se ao sabor das circunstâncias do género: "não guardes para amanhã o que podes fazer hoje", mas também: "Roma e Pavia não se fizeram num dia" ou até o mais comum ainda "devagar que tenho pressa". Aparentemente parece alógico este modo de pensar, mas restam dúvidas de que é analógico e que a semelhança de situações conduz, por indução, às mesmas conclusões. Sempre assim foi e sempre assim há-de ser. Mainada.
As crenças movem sociedades. Desde sempre que se propalou o fim do mundo para datas fixas: o ano 4444 para Heraclito, depois as viragens dos milénios, a famosa leitura da Bíblia que levou Miller a calcular o fim do mundo para 1843 e depois para 1846 e agora o difundido calendário maia que o situa a 21 de Dezembro deste ano. O certo é que nem os desmentidos da NASA ou quaisquer outros impedem que se continue a acreditar nestas previsões e que haja mais gente do que possamos pensar a preparar-se para o efectivo fim do mundo. Parece absurdo, mas tem lógica. A lógica dos mitos e como bem diz Gusdorf , «o mito não é mito para o homem do mito».
Como se vê as côcas continuam a vigorar.
Mais grave ainda se repararmos que continuamos a alimentar fábulas. A fábula é uma fala. Fala-nos, dá-nos conselhos, chama-nos a atenção para factos fantasiosos: o Pai Natal é uma dessas fantasias e o facto é que todos os anos o renovamos.
Como o mundo só acaba para aqueles que morrerem e o pai natal já saiu da Lapónia, aproveitai e festejai um Bom Natal. Que assim seja. Sem côcas.
XXXiiiiiiiiiiiiiGGGGrrrrrrrrrrrrrraaaaaaaaaaaaaaaaaaannnnnnnnnnnnnnnnnnnndddddddeeeeeeeeeeee