Ora digam lá que o povo não é erudito! Quando ouvi pela vez primeira a velha Libra a chamar isto ao seu neto Farnando, ali mesmo em frente da casa do Pirolas , fiquei assim como os tarantas que ouvem mas não entendem.
Só muito mais tarde, já com algumas letras aprendidas é que vim a saber quem fora Pirro de Élis, fundador da escola céptica, defensor acérrimo da tese que propugnava que a verdade nunca seria atingível e que o homem nunca dela teria consciência. A razão para a assumpção de tal posição radicava na constatação de que não havia um critério único de verdade e que só um relativismo seria aconselhável. Ora, tal posição inviabiliza uma verdade universal e assim nunca se podem formular leis. Era aquilo que os gregos chamavam a acatalepsia (impossibilidade de se conhecer a natureza própria das coisas) pelo que o melhor era um certo desprendimento da própria realidade e não nos preocuparmos muito (ataraxia).
Contemporaneamente podemos sentir influências desta forma de pensar em Karl Popper, o homem do falsificacionismo que propõe o inverso do normalmente crido: as teorias científicas só o são se puderem ser empiricamente falsificadas. O que há, são doutrinas aceites como verdadeiras, mas que o não são. Basta que ver que caminhamos sempre para novas formas de abordagem da realidade e que aquilo que hoje é a verdade é amanhã duvidoso e para a semana já é historicamente falso. É isto que justifica o progresso e que, consequentemente nos contentemos com probabilidades que se aproximam da verdade mas que a não têm, sob pena de liquidarmos a evolução do conhecimento humano.
É por causa disto que nunca se conclui grande coisa de um debate sobre um qualquer assunto: cada um dos participantes agarra-se com unhas e dentes aos seus pontos de vista, que considera os melhores, e fecha a porta a qualquer outro ponto de vista diferente porque será sempre inferior ao seu e assim não vale a pena ligar-lhe. É o que se chama o mito do contexto, que se pode expressar na afirmação popular de que " nunca há só um teimoso". Podeis chamar-lhe o que quiserdes: arrogância, pedantismo, mania, surdez, casmurrice, autoritarismo, sobranceria, narcisismo, umbilicalismo, ensimesmamento, misantropia, Socretinismo, ... o que quiserdes, mas vai sempre dar ao mesmo: eu é que sei e o outro é uma besta. Mainada.
O Farnando da Libra também assim era: teimosinho que nem galinha a tentar bicar o grão de milho pelo buraco da rede, quando lhe bastavam quatro passadas para o engolir se passasse pela porta ali ao lado. Pior ainda se o pombo por ali passasse e o engolisse...
Vamos lá então à estória: A velha Libra tinha um chão para o caminho das águas. Semeava milho para a burra e fazia uma horta pequena onde colhia no cedo alguns tomatitos e pepinos juntos com uns gatchos de Santa Maria numas videiras que tinha junto à parede do caminho e que « eram mai doces có mel». Tinha era um problema grave: o poço, a meio do Verão secava e podiam assar-se sardinhas lá no fundo. O remédio era acartar água em bidons que o Farnando tinha que encher no poço novo e levar na carroça para o chão. O Farnando era Perrónico mas não era parvo de todo: andava sempre à coca a ver quando é que alguém com motor ia ao poço a fazer o mesmo e pedia que lhe enchessem os bidons, que encher aquilo ao caldeirinho matava o corpo.
Além disso, o Farnando, se visse uma bola, esquecia-se do mais e era sempre o último a abandonar o jogo. A velha Libra rançava-o mas ele não ligava.
Quando apanhava os bidons cheios tocava a burra e lá ia direitinho ao chão e para não perder tempo despejava os bidons para o poço para poder vir jogar a bola outra vez. Quando a velha Libra ia para regar a hortinha, a água tinha-se sumido. O Zé Chornico que pegava com ela no chão:" diz ao teu cachopo que continue a acartar água que o meu poço agradece..." A Libra ficava preada e vinha sempre com alma para arrear nas fúcias ao Farnando: rais todos ta partam, garoto dum raio. Tou farta de te dizer que num botes a água dos bidons para o poço do chão. Vale mai lá deixares a carroça e trazeres a burranca, mê teimoso!
Farnando praguejava de igual modo - a falta que um pai faz na primeira infância!- ( os pais eram emigrantes em França e a Libra estava viúva)" velha dum corno não me desampara a braguilha...» Perdoe-se-me esta descida de nível mas o vernáculo assim o exige...
A questão era grave: Farnando dava-se mal com a besta e só a controlava entre os varais da carroça. Se a soltasse e a montasse para chegar à aldeia era certo e sabido que malharia com os costelados no chão que a burra não esquecia quem lhe punha carapetos de silva por debaixo da albarda... Cá se fazem cá se pagam... Depois chamem-lhe burra!... Antes JUSTICEIRA!
Aí está a razão por que Farnado despejava a água por gravidade e vinha com burra e carroça até à Lameira e ao poço novo... «Vai lá vai» dizia, «a puta da burra malhava comigo no chão e assim vem mansa que as patas batem-lhe nas guardas da carroça e só consegue trote, nunca galope.»
A pobre da Libra bem tentava domesticar aquele potro mas ele chegou a entrar pelo telhado às tantas da noite e a pobre desistiu de lhe trancar a porta.
Foi para a Alemanha como padeiro, tornou-se pasteleiro, comprou um ford capri, andei nele, uma bomba.
Também era perrónico: de vez em quando não obedecia ao dono e dava de rabo. Ainda lá apanhei uns cagaços...
XXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII GGGRRRRRRRRRAAAAANNDDDDEE