Declaração de interesses: não aprecio, nunca apreciei o
Entrudo, ou como agora é mais conhecido, o Carnaval; discordo em absoluto com a
decisão de não se conceder feriado neste dia. E expando: deveriam ser
concedidas pontes sempre que o calendário metesse um dia entre feriado e fim de
semana. Permito-me um vanguardismo: sempre que um feriado calhasse num fim de
semana deveria ser atrasado ou adiantado dois dias e conceder a respectiva
ponte (uma ideia tão vanguardista, afinal, como a de passar a celebração de um
feriado para o fim de semana.
A supressão do feriado do intrudo (que não era, mas era
sempre por ser autorizado), e de mais 4 (que o eram sem precisarem de
autorização), enquadra-se, disse um tal Álvaro, “nos esforços de Portugal e dos
portugueses para superar a crise económica e financeira que o país atravessa” e
que “a ideia é trabalharmos mais e melhor para termos um país cada vez mais a
produzir riqueza, um país cada vez mais a criar emprego e certamente um país
mais competitivo”. Pareceu-me ver um leve sorriso na cara do Álvaro quando ele
lançou estas atoardas a gritar sem falar: é a economia, estúpido!
Agora a sério: sou homem para pagar uma rodada se pudéssemos
saltar, num passe de mágica, para daqui a 5 anos e conferir se, ceteris paribus, a supressão dos
feriados resolveu a crise, produziu mais riqueza, criou mais emprego e
transformou Portugal num país mais competitivo. Perante a infirmação, teríamos,
estou certo, ao menos a oportunidade de ouvir as explicações do Álvaro, fazendo
jus à definição caricatural do economista: é aquele indivíduo que melhor sabe
explicar hoje porque é que se enganou ontem. Como não é possível, nem o salto
no tempo, nem o ceteris paribus, desconfio
que aquilo que é afirmado como uma verdade científica não passa de
charlatanice: não é possível estabelecer uma correlação positiva tão linear entre
aquela decisão e o resultado esperado. Ou, se se aceitar como plausível tal
hipótese, então esta não o é menos: a concessão de pontes sistematicamente em
todos os feriados contribui para a superação da crise, por via dos benefícios
económicos, sociais e culturais daí resultantes. Creio que posso até olhar de
frente o Álvaro e gritar-lhe sem falar: é a socioculturaeconomia, estúpido!
Como habitualmente, naquele ano, a aldeia animou-se com a
visita de dezenas de patrícios migrados que aproveitaram a ponte do entrudo
para darem um salto à terrinha. E trouxeram a prole. Alguns, até convidaram
amigos que haviam de partir satisfeitos e mais ricos à conta da história apreendida
nas pedras de Penamacor, Monsanto, Penha Garcia e Egitânia a Velha. Vieram,
como alguns gostam de dizer, recarregar as baterias, saborear a pacatez da vida
numa pequena comunidade rural, reviver o acto de dar a salvação a todas as
pessoas, relembrar o espírito familiar à volta da lareira, redescobrir o sabor
de uns grelos de nabo acabadinhos de apanhar e cozidos em panela de ferro com
um naco de presunto, lavar os olhos pelos campos verdejantes na caminhada
matinal pelos arredores da aldeia, sentir de novo a curiosidade de saber quem
morreu porque o sino tocou a dobrar, não resistir a saltar a parede para roubar
meia dúzia de tangerinas daquelas pequeninas e com a casca muito fina mas doces
como o mel, rever amigos de infância…
Por estes dias, os mini-mercados registaram movimento inusitado,
os cafés ficaram mais barulhentos, os tractoristas aceitaram pagamento
adiantado para lavrarem olivais e prados, os empreiteiros da construção civil
comprometerem-se a pequenas obras até ao verão, os especialistas da poda
adjudicaram vinhas e olivais, até o senhor prior foi chamado a anotar maior
número de missas na sua agenda.
Na tarde do dia de entrudo houve oportunidade para assistir no
adro, à choradela de entrudo teatralizada por João Cara Velha, Xico Feijão, Zé Tramoço e Manel Salazar. A
situação gozada reconstituía a sua versão da trapalhada que tinha sido o
casamento do Xquim Perna Arcada e da Isabelinha Remelica. Parece que o Xquim
tinha apanhado uma tal carraspana na noite anterior que por várias vezes foi
apanhado a ressonar durante a missa e há quem tenha assegurado que ele terá
mesmo soltado algumas flatulências ruidosas. Consta ainda que, dizem os que se
deram ao trabalho de se postarem junto à janela do quarto onde, por assim dizer,
o matrimónio seria consumado, a noite foi muito animada, mas porque a esposa,
despeitada pelas cenas durante a eucaristia, terá resistido a corresponder às
expectativas do Perna Arcada, tendo cedido apenas por volta das cinco da manhã.
A história era contada em verso, e os quatro artistas
assumiam o papel de padre, sacristão, e, claro, dos noivos. Alguns dos adereços
utilizados ultrapassavam a linha do humor dos mais conservadores: o padre
apresentava-se com paramentos em sarapilheira em muito mau estado, o sacristão
transportava a água benta numa lata ferrugenta com um piaçaba de giesta. Teatro
de rua por autênticos amadores.
O Álvaro não estava lá, não se pôde aperceber da importância
destas épocas nesta pequena comunidade rural, para o reforço dos laços identitários, na afirmação e redescoberta da cultura e história locais. E na economia local, claro que sim. O coitado, cuida que o problema se
resolve com uma injecção de vários milhões para “valorizar” o interior. Claro
que ajuda, mas não consegue comprar a identidade que se perde com a redução das
visitas dos migrados aos seus espaços sociais de origem, provocada pela supressão
dos feriados e pontes.
Votos de feliz intrudo.
Votos de feliz intrudo.
1 comentário:
A apologia da calaceirice é tão má ou pior que a teoria do Álvaro. Tal como os casamentos à antiga de 3 ou 4 ou ainda mais dias a comer à custa dos pais dos noivos foi desaparecendo também as "pontes " à custa dos feriados têm os dias contados. Se é verdade que para compensar a magreza dos casamentos actuais se compensa com as comemorações das "separações" plenamente justificadas ( as comemorações e as separações)na falta das pontes ainda não vi substituto condigno.É altura de começar a pensar no assunto.
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