quarta-feira, novembro 16, 2005

A NOSSA FALA XXXVI - CATANOS M'A CHAPÉREM

Ti Domingos Feduchas era um “engenhocas”. Deitava a mão a tudo: pingo em caldeiro roto, meias solas em bota gasta, remendo em agueira de telhado, enxertia de carapiteiro em pêra marmela, mergulho de videira, ilhó em cabresto, portado em capoeira, capador e matador de porcos, corte de cabelo, construção de carros de bois... Foi aliás um destes que lhe abalou a reputação: meteu-se a conceber e a construir um carro de bois dentro do palheiro, com rodas de pau revestidas a aro metálico e tudo, mas só no fim é que deu conta que não cabia na porta. O povo, quando soube, riu-se muito e, claro, teve choradela de Entrudo.

Era tempo de castanhas e a mulher, Ti Angélica Chamiça, entretinha-se a morsegar as martainhas que tinha comprado naquela manhã, enquanto Ti Domingos ajeitava o borralho. Avaliando oportuna a hora, lançou:
- Ó Domingos, atão sempre vamos a Lesboa ao casamento da filha da afilhada ó não? Já só faltam 15 dias e temos de dar uma resposta à rapariga. Tamém parece mal no irmos no encontras tu?

Ti Domingos Feduchas era avesso a viagens. A filha que tinha na França muito insistia para ele lá ir, mas ele, "está quieto!", "vinde cá vós se querendeis". Não sentia necessidades de sair do seu mundo onde tudo dominava. Era um verdadeiro homem do campo. Bastas vezes, quando chovia, calçava as galochas, agarrava no guarda-chuva de pastor e passeava pelos campos, sem destino, só para ouvir a água a cair e sentir o cheiro da terra molhada. Ele conhecia os caminhos como ninguém, sabia de cor a quem pertenciam todos os bocadinhos. Admirava os que os apresentavam arranjadinhos, reprovava o desleixo e o abandono. Claro que nenhum se comparava ao seu chão da quelha funda, à sua vinha da raivosa ou à sua horta na saramaga. As suas oliveiras e árvores de fruto apresentavam-se sempre devidamente limpas, a vinha exemplarmente podada e escavachada, a horta alinhada a régua e esquadro, com a ajuda de dois ferros e um baraço. Na agricultura, mandava ele hóstias. E no resto, que viesse o primeiro, mesmo apesar da história do carro de bois. Agora, tinha de ir a Lisboa, “rai's parta o diabo”. O vivo ficava entregue ao irmão, ficava bem entregue.

No dia anterior à partida, deu uma volta por todos os prédios, inspeccionando tudo demoradamente, como se se despedisse deles por muito tempo. Ti Angélica passou o dia atarefada a encher 4 cestos de verga com repolhos coração de boi, azeitonas carrasquenhas retalhadas, adoçadas à pressa à custa de uns escaldões, queijos de cabra, enchidos vários saídos do azeite, garrafas de jeropiga, figos secos, nozes, frascos de tomatada e de pimentada, malgas de marmelada nova, alhos, cebolas, ovos, pão e bicas de azeite cozidas no forno das traseiras. Já noitinha, ao Ti Domingos coube coser a serapilheira que tapava os cestos com guita e agulha de albardeiro. Foi nessa altura que Ti Angélica se lembrou que não sabiam a hora da camioneta. Aflita, corre Lagariça abaixo, sem mesmo se assustar com a botelha em forma de cara e uma vela acesa lá dentro que os garotos tinham pendurado numa oliveira. Estava tudo escuro e silencioso, mas ela não deixou de bater enquanto não lhe responderam do lado de dentro.
- Ó Rosa, atão a qu' horas é que passa a camineta das seis pa CastéBranco?

Como era de prever, Ti Domingos não se deu muito bem na capital da Nação, encafuado nas 4 assoalhadas do 10º andar frente, onde a afilhada morava em Odivelas. Custaram-lhe a passar aqueles 4 dias.
Na última noite, à ceia, descaiu-se para o afilhado que nunca tinha visto o mar. No dia seguinte, cedinho, foi conduzido ao Guincho. Embasbacado perante a imensidão, Ti Domingos Feduchas, homem simples, homem do rural profundo, soltou:
- CATANOS M'A CHAPÉREM! Já tinha ouvisto dezer qu’era grande, mas no fiz que fosse tanto.
O afilhado ficou-se de lado a apreciar, divertido, a expressão de espanto do padrinho, por isso não estava à espera que mesmo ali Ti Domingos Feduchas fizesse a sua análise de “engenheiro”:
- Ó Chico, o mar é bonito é poi! E grande com’á puta qu’o pariu…mas, o qu´ê gostava de ver era o paredão que aguenta tanta água.

2 comentários:

Anónimo disse...

Se alguém encontrar o Ti Domingos Feduchas, diga-lhe lá que o paredão que segura a água do mar é só um pouco maior que o da barragem da Baságueda (esta, para quem não sabe, é dadonde vem aiágua p'ós Xendros buêrem).

Anónimo disse...

A mingua de comentários deve-se ao receio de meter água? Não receeis! Comentai! Falai! Dizei, pois, o que vos aprouver