domingo, janeiro 27, 2013

JOÃO LUÍS

O João Luís era meu amigo desde pequenino.

Trazia-me brinquedos fantásticos quando vinha de férias da França.
Uma vez, chegou durante a noite, já eu estava na cama. Deve ter insistido muito com a mãe dele, mas a verdade é que me apareceu no quarto eufórico e a mostrar-me o último grito em pistolas, directamente de Brive. Mais ou menos cerimonioso, pegou numa espécie de um pau de plástico com um palmo de comprimento, enfiou-o pela boca da pistola até fazer um clique. Depois passou o indicador pela língua e com ele molhou a ventosa que estava na ponta do pau. Apontou à parede e…voilá, o pau ficou lá espetado.
Já não me lembro bem mas a minha mãe deve ter-se zangado comigo para eu parar de fuzilar as paredes.

O João desenvolveu um sentido de humor que me fazia inveja: criativo, fino, inteligente, oportuno. E manteve-o mesmo durante um par de anos apesar da doença. Nas conversas, nos escritos, lá estava aquele toque, aquela volta à ideia, à frase, à palavra que dava gosto ouvir ou ler. Quando tiver tempo e espírito, hei-de voltar a ler alguns comentários que deixaste aqui neste blogue, e também hei-de revisitar-te no teu TROGLAMONGA (só tu para dares um nome destes a um blogue).
Ainda há pouco mais de um ano atrás, por alturas do madeiro, na aldeia, já ele tinha muitas dificuldades em se locomover, conseguia surpreender-me com algumas tiradas. Se calhar, era também aí que ele ia buscar alento para enfrentar a besta que o devorava.

E que luta tu deste João!

Onde quer que estejas, espero que te tratem bem. Eu vou guardar-te como meu amigo desde pequenino.

Deixo-te aqui um som que eu sei que tu gostavas. Que nós gostavamos.






quinta-feira, janeiro 03, 2013

A NOSSA FALADURA - CXC - TRAMPASSO

Chorelas andava sempre de gravata. Vinha-lhe o nome do facto de andar sempre com os olhos vermelhos e remelados, permanentemente a lacrimejar, a ponto de quase ter um rêgo debaixo de cada pálpebra, consequência da erosão provocada pelo contínuo escorrer das lágrimas. Para agravar, o nariz era também uma fonte de muco viscoso que Chorelas limpava continuamente à manga do casaco, à cota da mão, quando, tapando uma venta, fazia pressão e o expulsava em direcção ao chão. Usava uns sapatos de atacador, quase sempre desapertados e à vontade aí três números a mais que o tamanho do pé. Podia dizer-se que se quisesse dormia em pé que os balanços da sonolência eram compensados pela biqueira dos sapatos. A camisa branca só o foi no momento da compra, já que agora parecia roupa de viúva em luto profundo. Não deixava a sua burra Mimosa em parte nenhuma e chegava a ir atado a ela andando a dormir. A burra sabia o caminho e deixava-o sempre à porta do palheiro. Chorelas acordava, punha-a à manjedoira e acendia o lume no andar de cima para cozinhar o que a terra dava em cada época do ano. Pouco mais.
Morreu já bem entrado na idade e ficaram famosos os seus trampassos, resultantes, na maioria dos casos de tropeções com aqueles sapatos avantajados que lhe serviam de abrigo aos pés. Não consta que alguma vez tivesse apanhado qualquer trampasso quando montado na Mimosa, até porque, quem sabe previdentemente, Chorelas aparelhava sempre a burra com as angarelas e metia as pernas à laia de estribo o de apoio, para "não ficar com os pés dormentes. Era esperto o Chorelas.
Além de se esmerar no trato da Mimosa, criava também umas poucas de galinhas, entre as quais estava uma cocó que chocava três vezes por ano, facto que Chorelas aproveitava para renovar a criação, matando uma de vez em quando. O galo não era grande, mas era vistoso e tinha crista romana. Cantava como um lírio e tinha um esporão já do tamanho de um dedo. Chorelas já o tinha tentado trocar " por mor de andar a galar as próprias filhas", mas como era mais pequeno do que os outros e idoso quanto bastasse ninguém aceitava a troca. De ano para ano Chorelas ia adiando a compra de outro e o abate do crista romana. 
Num caixote ao lado da manjedoura tinha também um caixote de madeira grossa, tapado por uma rede onde criava uma coelha que chegava ao macho cada dois meses. Era aqui que Chorelas apanhava grandes trampassos devido à sola escorregadia dos sapatos. Lá praguejava um barafusto, mas nada de monta.
Assim é o povo português: sempre a chorar lamúrias, sempre a gastar mais do que o que pode, dando a passada maior que a perna, sempre a ser explorado e a não atirar com os aparelhos ao ar. O tal povo dos brandos costumes, como Chorelas que tudo aguentava, até mesmo alguns atrevimentos mais descabidos de canalha miúda que se pelava por o ver arreliado. Chorelas fazia que não os ouvia e lá seguia o seu caminho atrás ou montado na Mimosa.
Tinha as sua piadas o Chorelas. Duma vez saíu-se-me com esta: "Sabes o que estou a pensar fazer?... Tenho lá em casa dentro duma caixa de palitos umas cinco centopeias. Ando a ver se descubro qual é a fêmea e depois faço uma operação ao meu porco a ver se ele também fica a andar com cem pernas. Assim ia tendo sempre presunto fresco sem ter que matar o porco".
Fiquei a olhar para ele e só soube responder: « Não está mal visto, não senhor!».
Ano Novo do melhor que puderdes ter são os votos do Basa. Sem trampassos.
XXXXXXXXIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGGRRRRRRRRRRRAAAAAAAAAAADDDDDDEEEEE.