terça-feira, dezembro 22, 2009

A NOSSA FALADURA - CXLVII - ESCARAMOUÇO

O natural é o caos e não a ordem. Só há bem pouco tempo esta asserção começou a fazer sentido. Na verdade, na sua incontida ânsia de tudo prever e controlar, o ser humano esforçou-se por ter um conhecimento semelhante ao divino. O próprio Galileu disse que "quando temos dos fenómenos da natureza um conhecimento matemático, o nosso conhecimento desse fenómeno iguala o conhecimento divino". Estabeleceu no entanto diferença marcante: por muitos fenómenos que se conheçam, todos eles não passam de uma insignificância, face ao que há para conhecer e que Deus conhece desde todo o sempre e sem precisar de fazer cálculos.
À medida que a tecnologia foi avançando, as certezas de antanho foram sendo abaladas, caíu-se num indeterminismo ou incerteza em que a ciência gravita hoje refugiando-se num probabilismo que tudo justifica, mesmo os erros. Finalmente o erro ganhou importância e o seu aparecimento frequente não esmorece a investigação, antes a espevita e incendeia. O probável é o crível e o crível não é certo. A certeza é inimiga da verdade como o óptimo é inimigo do bom.
Foi o contributo dos novos pensadores das ciências sociais que chamou a atenção para este fenómeno e, claro, como quem faz ciência é o homem e este continua a ser"ESSE DESCONHECIDO", como bem disse Alexis Carrell, então, fácil é deduzir que se ele nem a si se conhece não lhe será possível conhecer o resto do Universo. Refugia-se então na probabilidade, não porque goste, mas devido ao reconhecimento das suas incompetências mentais e intelectuais, tecnológicas,... . Volvamos a Galileu: «o que para o homem é de dificílima inteligibilidade é para a natureza de facílima execução.»
Esta aceitação do indeterminismo não é pacífica porque a ciência, ela mesma, para progredir, tem que partir do princípio de que aquilo que sabe e em que assenta o seu saber, é seguro e lhe permite projectar para o futuro. Nós, vítimas desse saber, vamos usufruindo o que nos vão pondo à disposição. Facto é que, aos poucos a tal ordem científica com o seu método de rigor põe ao nosso serviço um sem número de benesses que nos são muito úteis se as soubermos usar bem. Sirva de exemplo o telemóvel, ou o automóvel ou um simples frigorífico...,vacinas, que sei eu!?
É nesta crença de que as coisas acontecerão como se previa que o progresso vai acontecendo e, seja de erro em erro, ou de verdade em verdade, do que não restam dúvidas é que a humanidade vai cada vez tendo mais comodidades e não vem aqui ao caso discutir se isso é vantajoso ou se é prejudicial.
Estamos prépreparados para a ordem, o método, o seguidismo. Basta experimentar dizer o alfabeto em sentido inverso e logo vemos quão vantajoso é termos connosco a ordem clássica das letras.
Vem isto tudo ao caso por causa do nosso termo de hoje: escaramouço.
A malta do meu tempo vivia na angústia permanente de ir à tropa e ser destacado para uma qualquer das ex-províncias. Se havia alguns ofícios que na tropa eram um luxo: padeiros, por ex, outros havia que eram uma convivência com o perigo e esses eram a grande maioria.
Tira Linhas foi como enfermeiro para Moçambique. Passava a maior parte do tempo no Hospital militar já que o seu trabalho era conceituado, apreciado e respeitado.
Um dia, porém, contou-me ele numa daquelas faenas gastronómicas, desta vez no quintal do Isidorico (já lá está...), em que eu fazia jus à fama de artista na culinária, foi convocado para ir num helicóptero socorrer alguns camaradas que tinham sido alvo de um emboscada.
Tira Linhas equipa-se e depressa estava no ar e passado pouco tempo já estava no local do acidente. O médico que o acompanhava logo ia decidindo o que fazer com cada um daqueles pobres soldados ali amontoados num recanto, enquanto muitos tiros se ouviam, resultado da perseguição entretanto movida aos "turras". O Helicóptero não parava, num vai vem contínuo a levar feridos para o hospital de campanha... Tira-Linhas e o médico continuavam a volta , enquanto uma máquina abria uma vala para enterrar os mortos sem nome num escaramouço de cadáveres em vala comum.
Decidiram confirmar os mortos para os enterrarem e não ficarem vestígios.
Vários outros soldados e um unimog seguiam-nos a ele e ao médico e conforme o médico dizia: "este está morto", logo dois ou três soldados o atiravam sem qualquer zelo para cima do unimog e assim se iam amontoando num escaramouço entrópico. Como calhasse é que ficavam... Numa das decisões do médico, porém, o "este está morto" teve resposta: «não tá siô, só tá muito ferido". Logo um dos soldados:´«oh preto dum cabrão sabes mai có médico? ( perdoe-se-me a violência da linguagem, mas foi assim mesmo) se ele diz que tás morto, tás morto e mainada» e já ia a pegar-lhe para o atirar para cima dos outros. Aí Tira Linhas, intervém: "que é lá isso?" Ajoelhou-se junto do ferido constatou da gravidade dos ferimentos e foi então que mostrou todas as suas competências, deixando todos de boca aberta. Era assim Tira Linhas.

Ementa daquela noite: Polvo à Algarvia que Tira Linhas tinha trazido de Lisboa

1- Coza-se o polvo - quanto maior e rosa claro for, tanto melhor -sem sal e apenas com uma cebola grande em tacho com pouca água - o polvo solta quase a água para a sua cozedura -; Demora cerca de 40 a 50 min de fervura viva.

2-Tire-se para um crivo e deixe-se arrefecer; reserve-se a água da cozedura

3- Miguem-se às rodelas umas boas 4 cebolas para um tacho largo com o azeite considerado necessário: puxem-se bem até alourarem tendo o cuidado de não deixar queimar,

4- Juntem-se tomate sem pele e uma camada de batatas também às rodelas largas, uma primeira camada de polvo e um bom ramo de salsa espalhado por cima a toda a largura do tacho

5- Acamem-se alternadamente tomate batatas e polvo, de forma a que acabe com batatas.

5.1 - Se houver, junte-se miolo de camarão

6- Reduza-s o lume e deixe-se apurar

7- Quando as batatas estiverem quase cozidas (engroladas) cortem-se dois pimentos às rodelas , rectifiquem-se temperos: sal, picante ... deite-se um copo de vinho branco e abafe-se.

8- Deixe-se acabar de apurar

9- Pique-se um ramo de coentros que se atirará por cima quando estiver a ser servido

10 - Come-se com prazer e com algumas bocas à mistura.


BOAS FESTAS: O MELHOR DOS NATAIS PARA TODOS OS BASAGUEDEIROS!

xxxiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiGGGGGGGGGGGGGRAAAAAANNNNDDDEEEEE!

quarta-feira, dezembro 09, 2009

A NOSSA FALADURA - CXLVI - ABOQUILHA ou Abequilha

O velho Talha Burricos era fino como um alho... Eu que o diga. Nunca queria o gás depois das seis. Ia sempre pelo lado de trás a bater à porta, deixava a bilha e depois ia à frente e bradava: "Eh! cachopo, fica-te ali a garrafa do gás, amanhein de manhein leva-me uma." Já sabíamos o que era de manhein. E o pior era que me calhava sempre a mim.... Era a vida.
Quem fornecia quer o vinho para a missa quer o pão ázimo para a hóstia consagrada era a Casa Campos. que, não sendo por aí além, nenhum potentado, tinha a vantagem da ser governada por três irmãs, qual delas a mais religiosa e a mais poupada. Assim se manteve até que a velha da gadanha as foi ceifando e pronto: acabou-se o vinho branco arinto exclusivo para o sr prior e o pão lascado para o corpo de deus. Posso dizer-vos que quer um quer outro eram deliciosos. .. Por altura da desobriga, até porque na aldeia, naquele tempo, ainda havia xendro com fartura, era necessário fazer muita hóstia... Por ali vinham o padre Lobo das Águas, o padre Robalo das Aranhas, o padre Tarcísio do Pedrógão, o padre Manel de Penamacor, o padre Fatela da Meimoa, o padre Baptista da Benquerença, o padre Agostinho, já sem paróquia, o padre Carreto, também já jubilado,..., era mesmo uma confraria, e todos confessavam a rapaziada de aldeia que se perfilava a cada um dos confessionários. De vez em quando os padres faziam intervalo, por via das regras e da bucha que nisso, primeiro o padre Zé Pedro e depois o padre Pinto não se poupavam: era à tripa forra.
Sempre vos digo que os petiscos eram de lamber ou não fosse eu quem compartilhava essas aras de bem comer e até, às vezes, a confecção com a ti Mari Rainha. Outros tempos. Mais ainda: nenhum de vós alguma vez comeu pão ázimo com fiambre e vinho branco de missa... é o cúmulo. Se um dia vos calhar essa oportunidade, provai e depois contai-me. A pena é que já não há fiambre como antigamente e menos ainda vinho branco arinto. Vai lá vai...
Bom, a Casa Campos não faliu, mas os tempos mudaram e o padre Pinto - de boa memória - encomendou o vinho ao Talha Burricos, esse mesmo que queria o gás logo às seis da matina.
A casa dela não era longe e nem precisava de levar o mais que famoso carro quadrado. Ajudava-me à bilha do gás, punha-a ao ombro e ALA!, batia ao portão, Talha Burricos aparecia prestes, entrava pelo quintalinho, sempre pejado de mato por mor dos agueiros não atolarem, subia quatro degraus e entrava na cozinha. Já a panelinha de ferro cozia o feijão pequeno das Taliscas e o ambiente estava amornado pela lenha de carvalho arrecadada em tempo e agora a dar um jeitão. Lá ajustava eu a bilha ao redutor, experimentava a ver se tudo estava nos conformes e: "pronto, já está, bom dia e até logo". Logo O Talha burricos atalhava: «onde vais com tanta pressa...? espera aí um pouco» e para a ti Strudes (Gertrudes): « Eh mocita, arranja aí um aboquilho e leva-nos à loja.» Não tardava lá vinha o belo casqueiro embrulhado em bragal de primeira em cesto de vime e uma bandeja com uma tora de presunto, uma malga de azeitona retalhada, um queijo cabreiro num prato de esmalte e, uma vez até me calhou que havia castanhas assadas, já descascadas.
Sai-se o Talha:« Toma tento no que digo! se o queres tornar a provar tens que manter o bico fechado...» eu fiquei a olhar e ele: « vamos a provar o vinho de missa , mas no te esqueças, bico calado». O pipo não tinha torneira, deitou aguardente para desinfectar a borracha, como lhe chamava, sorveu para um pucheiro e vasou para uns copos de alumínio que até reluziam de tão areados. « Vá, bebe!» meti uma azeitona, tirei o caroço e vou-me ao néctar. Aquilo ainda não estava consagrado mas já era sacro. Que pinga de estalo! «Anda lá corta aí uma fatia de pão e um naco de abequilho que hás-de beber um copo assim comédado!» A hora era boa, a fome melhor, o branco convidava e o aboquilho era de ginjas: ataquei... Mais um alumínio e um estalo: " oh ti Tonho, este inda é melhor do que o da Casa Campos! " « É pra que vejas que eu num faço batota... isto é o sumo da uva puro, nem uma gota de água. É assim que querem é assim que têm.» Lá lhe expliquei a razão de ser daquela exigência e bebemos ainda mais uma cartolinha.
Passado não muito tempo voltei à loja e já o pipo tinha torneira. Havia mais gente que sabia que o vinho de missa lhe tinha sido encomendado e desafiaram o Talha Burricos: 'Ó ti Tonho. dê-nos lá a provar o vinho do padre!' «Eh cachopos, eu até vos dava um provo, mas o vinho é tão bom qinté coalhou com'ó azeite: experimenta a ver se já corre alguma coisa...» Lá ia um mais lampeiro a ver se tinha sorte, mas nada. « Vês!? coalhou!» Eu caladinho como um rato, saí com eles mas depressa voltei: "como é essa do vinho coalhar"? « Aprende que eu não duro sempre: o vinho já está ali em barricas, tirei-o todo por cima e meti a torneira a fazer ver. Se não fosse assim, só com os provos já se me tinha ido. » Vai lá vai! porque é que o diabo sabe muito? porque é velho, respondem os entendidos.
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terça-feira, dezembro 01, 2009

A NOSSA FALADURA - CXLV - MORRINHA

Água de cuco só molha quem está enxuto, já dizia o velho comandante, que, mesmo com morrinha não deixava de colher azeitona. Era velho dum raio: nada o vergava, nem frio nem calor, nem fome, nem sede, nem doença, nem pão rijo, nem morcela já rançosa. O queijo, seu conduto preferido, deixava-o embrulhado em folha de botelha, no meio do arcaz da semente e, como não lhe punha indicativo, sempre que precisava dum, praguejava por céu e terra, a ponto da velha Pássara (era a parteira oficial de toda a aldeia - foi ela que me foi buscar ao Fundão) vir ao balcão da casa contígua a barafustar: "num viesse um raio que queimasse a língua, comandante do inferno! Já lá tens o lugar guardado" « Vá pra quem a lambeu, velha dum corno» O azedume era notório, mas mal ela precisasse dum chirrichichi de azeite, ou uma brasinha pra atear o lume de manhã, ou um golo de aguardente para matar a bicheza e desinfectar um dente que escarafunchava com um pau de travisco aguçado e lhe doía,..., logo a Pássara batia à porta do velho Comandante.
Não longe morava a velha Nazaréi, mãe de Zé Lopes, enxertador de nomeada, lagareiro afamado e angariador de povo para excursões a tudo quanto fosse visitável: Srª de Fátima, santa de Alenquer, capela dos ossos, Viana do Castelo, Gerês, Nazaré ... e mais caseirinho, a Srª do Incenso, do Bom Sucesso, do Almortão e da Póvoa, que sei eu, Santa Luzia do Castelejo, Serra da Estrela, barragem Castelo do Bode,..., nada lhe escapava.
Aos Domingos, depois de missa, lá andava ele de tasca em tasca, da Rosa ao Zé Rolo, do Chico ao Fatela, deste ao Cavalheiro, vinha ao adro, especava-se na estrada, sempre de livreta na mão, pronto a assentar o nome e a indicar o lugar na camioneta. A meio da tarde já não dizia coisa com coisa e não se cansava de apregoar as suas competências, que não havia na área enxertador como ele e que se às vezes lhe falhava uma enxertia, a culpa era do cobridor que não tinha cuidado e lhe desandava a pua que ele ajustara com a sua própria saliva depois de aguçada com um só corte da sua navalha enxertadeira, de tachas em freixo que ele próprio fizera, e que até fazia a barba aos pêlos das pernas de uma cachopa.
Já que se fala em enxertadores, é dever de xendro nomear o velho Cucharra, homem pesado, que já mal conheci, mas que a partir de meados de Fevereiro não descansava um dia a espalhar arintos, rufetes, rabos de ovelha, baldrões, ferrais, dedo de dama, uva formosa, moscatel e outras castas. Uma bomba, este Cucharra. Era capaz de andar, um dia a cavalo noutro, sem nunca se endireitar, sempre curvado a fazer finco nas cruzes, sem se queixar. Comia uma quarta de feijão frade com cebola e muito azeite, e um galo dos grandes, daqueles das bodas, não lhe fazia papo. Valente Cucharra: o nome advinha-lhe do facto de ter a mão encurranchada por mor de uma cortadela feita pela enxertadeira. Ia até aos Três Povos a sua fama, para Norte, e Alcafozes e Idanha-a-Velha ainda hoje têm vinha de enxerto do velho Cucharra.
Voltemos ao Zé Lopes e às suas excursões...
Duma vez tem uma ideia genial: queria comprar mais uma tapada limítrofe da sua na fonte salgueira e o dinheiro era curto.
Vai daí, andou dois meses a guardar garrafões de plástico vazios- inda eu lhe levei muitos -.
A excursão era à Nazaré. Encheu o fundo da camioneta com os garrafões e, a meio da viagem, começa a cair uma morrinha chata, miudinha, basta quanto bastasse.
Zé Lopes tinha-a fisgada e desde cedo começa a dizer que ninguém podia ir ao mar porque a água estava a ser analisada porque era do melhor que havia para o reumatismo. Ele tinha acautelado o caso e tinha escrito um postal ao Presidente da Junta da Nazaré que o autorizou a encher 100 garrafões de água do mar , mas cada um custaria 5$00.
Quem sofresse de reumatismo tinha que largar os tais 5$00, mas só ele é que podia ir encher os garrafões.
Assim foi. Os garrafões tiveram venda garantida e Zé Lopes lá angariou mais 500$00 de lucro, às abas da água salgada do Atlântico, que eram uma boa ajuda para a compra da Tapada.
E o caso ficou ainda mais sério e a veracidade do diagnóstico reumatismal foi exponenciado quando Manta-Rota, seu sucessor nestas andanças excursionistas, que entretanto tinha espetado uma sorna, devido aos etílicos, lança os olhos ao mar e exclama:« A água há-de ser mesmo boa para o reumatismo... Olhar além... inda há bocadinho a água chegava ao cimo do paredão e agora já vai ao fundo. Os gajos têm-se fartado de vender água» Todos olharam e confirmaram.
Zé Lopes asseverou: "Só lá apanha água quem tiver ordem, mainada". A morrinha recomeçou e até à aldeia ninguém falava doutra coisa senão do jeito do Zé Lopes para aquelas lides.
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