sábado, julho 15, 2006

A NOSSA FALA - LXII - TRAMBELHO /TRAMBELO

Tempos inefáveis eram aqueles em que, apanhado o comboio em Castelo Branco, a malta da região que, na altura, estudava em Lisboa e não era assim tanta que não se conhecesse, ocupava toda uma carruagem - às vezes até já estava parada na estação e depois era só atrelá-la à máquina - .
Embora a viagem demorasse umas boas cinco horas, o tempo não custava a passar. Não raro, e porque a carruagem era sempre a última e o comboio parava em tudo quanto fosse estação ou apeadeiro, lá apareciam uns fregueses das Benquerenças, do Retaxo, dos Amarelos, das Sarnadas e por aí abaixo. Aquilo era fatal: mal se acomodavam, o cesto da merenda era logo aberto e "são servidos"? Ai não que não éramos!
Quantas foram as vezes que o meu pai me dava cinco litros para oferecer à Senhora da casa onde eu me hospedava. Nunca o vinho chegou sequer ao Entroncamento. Depois comprava outro vinho e era esse que oferecia. Era a vida.
"Olha, filho, não botes a cabeça fora da janela do camboio que ele passa numa ponte tão rente, tão rente que já se contam por nove os que lá ficaram." Invariavelmente era assim. E continuava: "Vê se te portas com trambelhos de gente...Já és um homenzinho!"
Voltas dei eu para descobrir donde raio vinha este termo TRAMBELHO. Lá descobri: o trambelho era uma espécie de registo que regulava a entrada da semente na mó - se se queria a farinha fina apertava-se o registo, se mais grossa alargava-se o trambelho.
Assim também aquele que se porta comédado e tem os cinco alqueires bem medidos tem trambelos de gente o que não tem regra e ora aperta ora alarga sem rei nem roque, não tem tino, é um taranta. Ah! o registo aqui não é o assento no livro do registo civil. Não. É uma roda dentada na ponta de um eixo, rachado ao meio, que atravessava os candeeiros a petróleo na parte metálica onde assenta a chaminé e servia para regular a chama desse candeeiro. Havia-os também nos fogões a petróleo e com a mesma finalidade: regular a potência da chama.
Figura inolvidável da xendrada era o Zé Bondito. A paciência que a ti Maria teve em aturá-lo só a divindade a saberá. Só apanhava uma bededeira por ano: de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro. mesmo nos bissextos. Duma vez o encontrei eu deitado na valeta ali ao fundo da curva do muro do Marcelo, em frente da casa do Geadas... Chovia sem trambelhos nenhuns. Água com fartura!
Vinha eu de levar uma bilha de gás ao Rancheiro, lá por detrás do cemitério, com o incansável carrinho quadrado, boina na cabeça e bota cardada, quando, depois de passar a ponte, começo a ouvir um rosno compassado. Apuro a orelha: era o Bondito!
"Ó tzéi?Tzéi! "clamei.... "rais o afundem... "Voltei atrás àquilo do Cavalheiro e lá engatei o Fainica, que era vizinho do Bondito, e o João Feijão, que só veio a troco dum copo. Os três lá arrastamos Bondito para debaixo do alprendre do Geadas, onde é agora a loja do Licas, mesmo na curva do aidro. Fui pôr o carrinho na garagem estrela, ao canto do Fatela por debaixo do baturel da velha Batista e vou-me à casa da ti Maria, quase ao cimo da Lagariça, paredes meias com o velho Comandante e bem perto da velha Passarinha, vedeta outra que um dia trataremos aqui comédado: - era Passarinha, porque era a parteira de serviço na Aldeia e, claro, tinha que ver muita passarinha - !
Bato à porta e lá oiço passos do lado de dentro, apercebo-me do aumento da luz no registo do candeeiro a petróleo : "quem está aí?" Lá me identifiquei, já a velha Pássara estava no cimo do balcão, a Maria Chan Chan já vinha com uma pinha acesa a ver o que se passava, o velho Sarrabeco com a voz catarral "que é lá isso,home? e até a mari troncha, que antes queria ter um filho,(e teve oito antes de o seu Jabão se enforcar) aparece à esquina tentar ver à luz dum fósforo que acabara de riscar na lixa da caixa, brada: «O que queres à mulher a esta hora, ó fedelho" tu num sabes as horas? já num há trambelhos nenhuns!-
A ti Maria, é preciso dizê-lo, era uma das forneiras da comunidade, já dormia - que o dia começava às quatro da manhã para ela quando deitava lume ao forno da D. Carminda, do outro lado das escolas velhas, um pouco acima do Tonho pitincoiro e em frente do velho Forelho. (Isto é que são dados geo- estratégicos! qualquer rasca, curioso em G.P.S.. daria no forno com estas indicações).
Voltemos à narrativa...
Lá venho com a Ti Maria - esta malta, a bem dizer, dormia vestida - direitinhos ao alpendre do geadas, mas ... Bondito, viste-o!
Ao fim de algum tempo lá o achamos na rua de trás, portinhola desapertada e a cantarolar: "Ela já anda na rua!ela já anda na rua! côtche!côtche! côtche!"
«Vergonha da família, vocêi num sinvergonha deste porte, seu porco sujo?!» e ele: « ela já anda na rua! ela já anda na rua!... Caminhe à minha frente para casa, seu badalhoco!"
O Bondito, aquecido como estava, nem arrastava o pé! A água continuava a cair!
"Estou chapado!" digo para mim. De repente penso:" vou a buscar o carrinho , sento lá o velho e...ala!."Foi um instante.
Empurrei o velho lagariça acima, levei-o em braços até à soleira e deixo-o para a ti Maria: "bem hajas tu! meu home! bem hajas tu! é a minha cruz.... O Comandante ouviu e conheceu a minha voz:"és tu ,Changoto?! "Sou, meu avô!" Não tardou já estava a descer as escadas com a candeia baixa, a abrir a porta da adega, ali mesmo em cima do barroco que tanto servia de eira como de passadeira de figos:" ó porra! estás molhadinho que nem um pito! anda lá pra cima pró pé do lume!" A custo lá lhe disse que não, que bebia um copito e me ia à cama!
Aos poucos lá se foi convencendo: "vês o que dá a falta de trambelos do Bondito! Ê tamém gosto dele mas vêi lá se algum dia me viste borracho. Um homem tem que honrar o tchapéu que traz na cabeça. A canalha é que pode perder o tino! um homem tem que andar com trambelos de gente. "
«Já me vou avô! Fique descansado que eu tenho trambelhos, assim comédado! Dê-me a sua bênção» "Deus tabindçôe, mê filho! e te faça um home de bo sorte!Amén"
Desci a Lagariça sem trambelos nenhuns com o carrinho a saltar na carecada das pedras de quase meia calçada e só parei ao lume, já o meu pai dormia e a minha mãe estava em cuidados. Quis saber a história. Contei-lha, deu-me um beijo, e deitei-me.
Quereis mais trambelhos que estes?
UM XXXXXIIIIGRRRRRRRAAANNDDDDEE!

sexta-feira, julho 07, 2006

A NOSSA FALA - LXI - ESCARAPUÇAR

Lembro-me de uma vez, quando se estudava a formação das palavras, que, em causa, estavam as divergentes nau e nave, provenientes do étimo latino NAVEM. A explicação dada, então, pelo meu companheiro de turma, foi, que NAU entrou na Língua Portuguesa por via marítima e NAVE teria entrado por via espacial. Era também estralibeta este velho companheiro.
Numa aldeia bem perto da nossa quando os pirolitos com os berlindes foram substituídos pelas caricas e, porque tal nunca tinham visto, imperioso se tornava arranjar um nome para aquela nova forma de tampa ou rolha, o povo não se ensaiou muito: como as caricas são parecidas com as formas dos bolos de coco, sejam em lata ou em papel, nada mais simples que chamar-lhes FORMINHAS. Ainda hoje por lá se chamam assim. Ainda outra: uma mulher, por acaso casada com um natural desta aldeia, tinha como apelido CARRECHANA. Dava-se o caso de a mulher ser de tez muito escura. Ora como as trovoadas também escurecem o céu, quando ameaçam a descarga, a ligação foi instantânea: vem aí uma carrechana!
O que aqui nos traz hoje é também uma palavra que derivou de carapuça, não por via gramatical, mas por via imagética, direi eu agora. De facto a palavra carapuça é, por demais, conhecida e até sentida, já que continuamente nos estão a enfiar uma. A uns assenta bem, a outros nem tanto!
ESCARAPUÇAR dizia-se essencialmente da situação em que a baraça com que se enrolava um pião, fosse porque não fora bem apertada ou apertada de mais, fosse porque o nó que se punha junto ao ferrão e que permitia enrolar de baixo para cima o dito cordel, fosse ainda porque o desgaste da baraça era já de tal monta que mal se podia puxar, fosse por que razão fosse, o certo era que o pião não dançava e tínhamos que o pôr na roda do meio à espera que um amigo no-lo tirasse.
Poucos tiveram tantos piões novos como eu : o sr. João Vicente, mecânico que era na garagem Petronilho em Penamacor, vinha todos os dias apanhar a camioneta ali ao pé de casa. Invariavelmente nós jogávamos o pião e ele pedia-mo sempre a mim.
A força daquele homem era bruta: chegou a levantar do chão uma carrinha HANOMAG para que o seu parceiro pudesse por uma preguiça a fim de tirarem o pneu, pois, o macaco tinha-se avariado. Quando ele lançava o pião, se caísse em cima de qualquer outro que estivesse no sal (castigo por causa de não ter saído da roda) era certo e sabido que o escarchava. Às vezes o pião batia numa pedra ou em alcatrão mais rijo, e, de um, ficavam dois. Logo a mão ia ao porta- moedas, saíam cinco mil réis e "vai comprar um novo."
Havia piões esgravunas que mais pareciam galinhas a esgaravatar e outros que até se ouviam zunir, bem calibrados que quando a velocidade reduzia se deitavam sobre o seu próprio eixo e, ... aí vinham eles para fora da roda! Estes eram os mais valiosos.
O ESCARAPUÇAR vem do facto de ao vestirmos o pião com o cordel e, embora fosse vestido de baixo para cima - ao contrário da carapuça que se enfia de cima para baixo- às vezes o cordel se desmaranhar, (desemaranhar) , o pião, assim vestido, parecia uma boneca de carapuça. Já percebestes agora por que razão a via de entrada na língua portuguesa foi a via imagética? Como é parecido passa a ser igual. MAINADA! É apenas uma questão de imaginação.
Quantas vezes eu ouvi a mesma história ao João Vicente quando escarchava os piões !- a ele não se lhe escarapuçava a baraça. Tinha uma só dele que fazia a inveja da malta.
Dizia ele:" sabeis porque é que eu tenho esta força toda? Porque como muito bacalhau e o bacalhau é o peixe mais valente que há no mar.» «Como é que sabe isso? », perguntávamos nós, malandrecos, só para tornarmos a ouvir a resposta: "porque depois de pescado, esquartejado seco, salgado e demolhado ainda lhe fazem uma punheta". Todos ríamos e até corávamos.
Também nós ficávamos escarapuçados, assim como que "incouros" perante vocabulário desta monta. O que é facto é que até parece que gostávamos.
Se lermos isto à luz da Psicanálise pode ser que, de algum modo, isto consista num mecanismo de defesa do eu que assim evita o complexo de castração, através de uma transferência para o outro da nossa incapacidade.
Se calhar, sou eu que estou a meter alguma escarapuçadela! No melhor pano cai a nódoa.
Escarapuçado se dizia ainda, quando, garotos imberbes e de experiência curta, nos era pedido para ogarmos um bom molho de colmo e nos era dado um nagalho... Quem não soubesse como pegar na palha, era certo e sabido que o molho se escarapuçava e era alvo de mangação.
Passou-se algumas vezes comigo até que com o tempo dei nela e os velhos já não me atentavam. Outros tempos em que os garotos eram facilmente escarapuçados!
Havia de ser nos dias de hoje!