quarta-feira, janeiro 04, 2006

ACTA ANTECIPATIVA DA MORTE DO MARRANO

Às sete da manhã nevoenta
De 30 do mês do Natal
Saíram de casa, com pêlo na venta,
Os constituídos para dar cabo do animal.

A equipa é mais que distinta,
Moca, nosso Fernando, nosso Zé,
Karraio, e Changoto da quinta,
Gaducha, Chaves e um Sardones até.

Ali bem perto, às Poldras
Junta-se à trupe o Zé Caçador,
Grita: "Já cá levo as cordas",
E acelera forte o seu tractor.

Chegados ao local de abate,
Aguardente fraca, pouco adoçada,
Nozes e figos secos como contraste
Iniciam a valente almoçarada.

Apresentam-se as armas à porfia:
Fusis, navalhas, serrote e machado,
Pedras, maçarico e até um fio,
Mais a banca para o condenado.

Muda-se a farda, calça-se a bota,
Entra-se na furda, separa-se o tó,
Ata-se-lhe a pata, empurra-se prá porta
Cada um sua sentença, afaga-se com dó.

O animal já habituado ao aposento,
Recusa-se a percorrer o caminho...
E então que num momento
Se lhe aperta um arame ao focinho.

Com três a puxar e quatro a empurrar,
O malhado lá passa a porta do curral.
Os outros, todos a ver, acabam de ralhar
E acompanham os algozes ao tribunal.

Diz um:"passa-lhe a corda por baixo"
E outro:"vê se me tombas o animal"
"Cala o bico senão inda te racho
Pega-lhe no rabo que não te faz mal".

Ao fim de uma boa meia hora
(vergonha das vergonhas em matança)
Lá conseguem tombar a alimária.
Podia finalmente começar a dança!

"Vá lá!" diz o mestre, "todos ao mesmo tempo,
Um dois trê..."espera aí que me vai escapar"
Aguarda-se então um breve momento,
E, depois, então, foi só levantar.

Poisa-se o volume ao comprido na tábua,
Puxa-se a jeito, compôe-se a faceira...
Logo um traz um balde de água,
E o matador pega na matadeira.

E foi um "ai...", logo à primeira,
Enterrou a faca, tirou-a e ficou a olhar
O animal a grunhir, a ferida que fizera,
O sangue a correr em bica para o alguidar.

A colher de pau não parava no barro
Sempre a dar-lhe para não coalhar.
Metia-se a mão, sacava-se o tarro,
Comentava-se a facada sempre a segurar.

"Põe-te a pau que ele vai esticar"
Aconselhava o que pegava a orelha.
"Olha o esperto", diz o do traseiro a brincar,
"Vê lá se te foge e te chamo azelha."

"AtençãolAtenção! Vamos lá a preparar."
Clama o matador a ver a brincadeira!
"Não estive eu aqui a aprumar-me
E ficar envergonhado por uma asneira."

Ao fim de uns bons esticões
Lá se ficou o porco, sem bulir...
Limpa-se a barbela, dão-se uns apalpões!
Desatam-se as cordas! Começa-se a sorrir.

"Arre porra, ninguém quer mecha!"
Diz o que segurava a pata dianteira.
"Um homem tem mesmo que fazer queixa:
Não há um copo! Só querem brincadeira."

Ouve-se então alguém a vir,
Viram-se todos para o portão.
Era o Barrocas campeão a tossir
Que já trazia o cigarro na mão.

"Vá lá, chegou mesmo à hora.
Tínhamos deixado molhar os palitos,
Mas não temos que nos preocupar agora,
Já temos quem acenda o maçarico."

Sorriso largo, fumarada solta,
Calmamente se aproximou.
Com a mão a todos deu a volta,
E foi ele que em vedeta se tornou.

Iniciaram-se piadas de caserna,
Até que se ouve uma voz tonitroante:
"Isto aqui é alguma taberna?
Assim isto não vai p'ra diante."

"Tens razão" comentam os conjurados
"Vamos mas é ao que interessa
Daqui a pouco estamos gelados
Por nos pormos a olhar aquela peça."

Foi assim que o maçarico se acendeu
E se chegou o lume à ferida.
Na agulha uma guita se meteu
E pouco tardou, estava já cosida.

"Vamos lá mas é a pôr ordem nisto"
Ditou o Barrocas então chegado
"Mas haja cuidado por Cristo
Qu' algum inda pode ficar queimado."

"Bem falado, então isto é assim":
Vocifera alto nosso Fernando.
"Um aqui sempre atrás de mim
Que eu dou-lhe lume brando."

A chama do escaldante queimador
Sempre orientada no sentido sul
Implicava atenção ao calor
Pois até já o bocal estava azul!

Lá se ia chamuscando, primeiro atrás,
Logo à frente, depois a barriga,
Sempre um a dizer como se faz
E em latim se inicia uma cantiga:

Infelix animal es, suine ora mortue,
Ut augeas ventres omnium scholarium
Dolore maxima, duces saevi, impiique
Te damnant, etiamsi sis sordidum.

A música é depressa por todos adoptada
Sai um coro afinado, sem maestro.
Apesar de não perceberem nada, nada,
Entravam bem na melodia, mesmo a estro!

E o porco lá ia, com jeito, sendo queimado
Sempre atrás do lume ia o raspador.
Em breve ficou bem pronto dum lado,
Aquilo é que estava a ficar um primor.

"Eh! Malta! Está na hora de ser voltado."
Logo todos se apressam para lhe pegar
Primeiro de costas, o lastro breve assoprado,
Depois com jeito e arte foi só virar…

"Vá lá a ver quem sabe arranjar o focinho",
Aponta o Gaducha ao vê-lo ainda por fazer
E logo um se lhe atalha ao caminho:
"Isso já toda a gente sabe quem há-de ser".

"Ouve lá, ó meu basbaque de tanto saber,
Inda não tiraste as mãos das algibeiras
Sabendo que há muito por fazer
E pões-te a dar sentenças brejeiras?"

Uns riam, outros acenavam que sim senhor
Mas lá acabaram por concordar:
A cabeça pertencia ao matador.
E lá teve o desgraçado que se baixar.

"E o rabo! Quem faz o rabo a preceito?"
E viram-se todos para o Caçador
"Eu cá não tenho qualquer jeito,
Haja alguém que faça o favor."

É agora a altura das carchanolas,
Unhas para os que são ignorantes
Queimam-se bem pois parecem solas
E brinca-se com elas como dantes.

Aquele que as tira, finge que as aventa
Mas guarda-as, bem guardadinhas
E metê-las nos bolsos é o que tenta
Das pessoas que estão mais vizinhas.

Os que dão conta, empurram-no com força
E ele aconselha-lhes alguma calma.
Calado, salta para outro como uma corça
Senão não dá descanso à sua alma.

Dá a volta e no que estava mais distraído
Lá enfia, por fim, a sua encomenda
Afasta-se aliviado e descontraído
E atenção aos outros recomenda

Todos, sem à partida fazerem referência,
Vão sempre guardando a rectaguarda.
Não fiquem eles com a indecência
De as levarem consigo na farda.

Enquanto tudo isto se passava
O cerdo ia ficando como novo
Barbeado conforme a navalha passava
Já quase se podia mostrar ao povo.

Apaga-se o maçarico já desnecessário
Grita-se por água rápida e com fartura
Procuram-se pedras de natureza vária
Inicia-se a lavagem à bacorura.

Nosso Zé, com muita jeiteira
Segurava a mangueira numa mão
Na outra, regava com uma cafeteira
A medida que se fazia o raspão.

Trabalho, trabalho, tinha o matador
A limpar as rugas daquela tromba:
Escarafunchava com raiva e vigor,
Estoirava como se fora uma bomba.

Já bufava e as mãos se lhe engadanhavam
Quando repara que faltavam as orelhas.
"Uma esfregadela era o que precisavam
Os que aqui passaram, os azelhas."

E exclama: "quem me traz sal grosso
Para vos ensinar como se devem limpar
Estes abanos às vezes rijos como um osso"?
Prestes, Karraio, logo lho foi buscar.

E preciso agora fazer-lhe bem o cu
De maneira que não se fira a tripa.
Resta saber quem será o gabirú
Que a tal trabalho se dedica.

Vê-se um, disponível, a sacar da navalha.
Tal disponibilidade a todos espanta
E quando ia a iniciar aquele trabalho:
"Eh! pá!, olha que é preciso tirar a trampa."

"Mau..., ainda ninguém teve fome?"
Diz um que andava com a perna manca.
"Olhem que até à uma ninguém come!
E servirem-se já da morcela da banca!"

Logo em resposta ouve o que pedia
"Galinha que canta é a que põe ovo,
Já era assim que o meu avô me dizia,
Come-a tu e diz-me que tal é o provo."

"Vai mas é buscar um bom nagalho
Enfia-o aí até ao fundo da abertura
Torce e puxa para ti, ó meu bandalho,
O que conseguires sacar da ranhura."

"Tem tento nessa língua, ó depravado,
Senão ainda limpo a essa linda cara
Aquilo que vier a ser o resultado
Da sonda que ainda há pouco enterrara."

Tão amena conversa se ia travando
Era tão boa a disposição de toda a gente
Enquanto no traseiro se ia cortando
Que ninguém se lembrou da água quente.

"Se isto vai continuar assim, desta maneira,
Digo-vos que ponho os pés a caminho.
Vamos lá acabar com a brincadeira
E ver se alguém me traz um copo de vinho."

E continua, alterado o grande artista:
"Tu, ó Faz-Nada, acadeja-me água quente
E vê se deixas de te armar em fadista
E te portas de modo a seres gente

"Porque é que logo me viste a mim
Que estava aqui tão sossegadinho
Toma mas é um raminho de alecrim
Que te faz muito melhor que o vinho."

Valeu à circunstancia que o Caçador
Ali apareceu com aperitivo e garrafão.
Assim, lá se acalmou todo o vapor
Da zanga que estava a ruinar a sessão.

Já com o chambaril o Moca aparecia
E os nervos das traseiras se revelavam
Há já muito tempo que se não via:
Todos com o transporte se preocupavam.

Uns apareciam com sacas de serapilheira
Outros com varapaus como fueiros
Cada um defendia a sua maneira
Tudo se acalmou e lá foram ligeiros.

A roldana e a corda tinham sido aprontadas
À entrada da porta alguma dificuldade
Tardou -os na sua pressa danada
E tiveram que refrear as ganas da vontade.

Já dentro da loja debaixo da viga
Engata-se a corda, eleva-se o animal.
Um sobe ao banco, faz uma figa
Dá um nó de modo que não fique mal.

"Pronto, já está, podeis deixar o bicho"
Devagarinho lá o foram baixando
O gato sapou para o seu nicho
E o material preciso se ia preparando.

Surgem alguidares, travessas, pratos
E logo: "Então, mas afinal isto o que é?"
Mais me pareceis uns grandes ratos.
Haja alguém que vá buscar um café.

Abre-se o ventre agora escancarado
Com golpe ao centro pouco profundo
Não tardou que o cutelo bem afiado
Trouxesse o corte direito até ao fundo.

Volta ao cimo e, com os dedos em V,
Abre caminho ao bico da navalha
As tripas logo toda a gente as vê
E traz-se o tabuleiro que as apanha.

Agucei então umas sovinas de esteva
Para o porco poder ficar largo a secar
E disse. "Atenção, daqui ninguém o leva,
Sem a carne estar boa para se cortar."

Entretanto, o cheiro de um fígado a assar
No borralho, que ficara sempre aceso,
Anima o corpo, que já estava a ficar
Devido ao frio, um pouco teso.

Então, sem que ninguém o veja
Changoto inicia a sua faena culinária:
Já tinha limpo das tripas a molareja
e agora limpa as glândulas da alimária.

Num tacho já frigem dentes de alho
Em azeite fino da bela oliveira,
Juntos com louro e um famoso molho
Que é criação da sua alta craveira.

A chicha, cortada em nacos valentes
Entra logo com a pimentada caseira
E todos com a fome afiam já os dentes
A contar com a cheirosa petisqueira.

Boné na cabeça, avental a preceito
Atento ao fogo, à trempe e ao tacho
Vai deitando vinho, sempre com jeito
Não se agarre a comida com o fogacho.

Dá a provar o molho de vez em quando
E cada um apruma o seu paladar
Ajusta-se o sal, corrige-se o picante
Envolve-se o entulho, fica-se a esperar.

Sai fumegante o tacho com o petisco
Cada um pega a sua arma na mão
Estava já um prestes a morder o isco:
"Vê lá se reparas que tens aí um pão."

Célere recolheu o braço atrevido
Mas os compinchas não lhe perdoarão:
"Tu, ficas a saber que já estás cozido
Ficas encarregado de servir do garrafão."

Lamuriento, teve de aceitar o seu destino
Ele que tanto gostava de dar ao dente
Até que deixasse atestar bem o papinho
Tinha agora que comer atrás da gente.

Pouco tardou estava o barranhão aliviado
A rapaziada dirigia-se já para junto do sol,
Quando de repente se ouve um alto brado:
"Cada um lave o que sujou, enquanto está mole.

Muito a custo lá foram até junto da torneira
Esfregão, pano, água e, claro, detergente
Deixaram tudo a brilhar na cantareira
Ficou a dona de casa toda contente.

Faltava agora descer o defunto esticado
Alarga-se o nó, deita-se sobre a padiola
Leva-se até ao veículo para ser transportado
Até junto dos qu' aguardavam junto da Escola.

A viagem correu sem qualquer acidente
Já todos traziam um lavado fatinho.
Na presença de quase toda a gente
Eleva-se até ficar bem, com jeitinho.

Finalmente, de novo fica o cerdo exposto
Já a lenha seca ardia na metade do bidão
Pouco faltava pra qu’o que lá estava posto
Não tardaria, estava feito em rubro carvão.

Cada um para o talho então se dirigiu
Cortava onde podia, apetecia ou conseguia.
Azelhice tamanha em muitos então se viu
Mas nem por isso arrefeceu a alegria.

3 comentários:

karraio disse...

Aviso à navegação: esta acta foi originalmente publicada no Boletim Informativo da Junta de Freguesia de Aldeia do Bispo, nº 2, Natal de 2000.
Republica-se agora com alterações pontuais.
Não se importam, pois não?

Jorge Portugal disse...

Eu não me importei nada! Até porque não tive oportunidade de ler a versão original...
Está deliciosa esta descrição "rimada" da matança. Com todos os pormenores desta tradição que, face às regras comunitárias e outras, está a desaparecer. Até as "deixas" do costume não são esquecidas.

Muitos parabéns pelo "Baságueda", que não tenho acompanhado com a assiduidade que gostaria, mas ao qual dou uma espreitadela sempre que posso.

Desejos de um óptimo 2006!

Anónimo disse...

Corroboro Amigo Lapaxeiro. Mas a inspiração quase á velocidade da luz, do Amigo Changoto, bem como o facto dos comentadores se terem habituado a comentar apenas o último Post, ou o do momento da visita, assim justifica. É importante dar uma voltinha semanal, pelo menos, pelos Posts da página Inicial.