quinta-feira, abril 30, 2015

A NOSSA FALADURA - CCXXXV - SAROTO

Se há tema de difícil tratamento, sem dúvida, o tempo ocupará lugar cimeiro. Agostinho de Hipona em resposta à pergunta: o que é o tempo, sai-se assim (Vide Confissões, XI, 14-17): «Se ninguém me perguntar, eu sei, se quiser explicar a quem me pergunta, já não sei.».
Podemos falar de tantos tempos, que difícil é em pouco tempo conseguir enumerar tantos tempos: tempo físico, tempo psicológico, tempo atmosférico, tempo atómico, tempo social, tempo real, tempo virtual ... e até algumas partes do tempo são tão diversos que até parece que não nos referimos ao mesmo espaço de tempo: ano civil, ano fiscal, ano lectivo, ano religioso, ano agrícola..., tantos tempos e passamos a vida a dizer que não temos tempo.
Mais complicado ainda é se repararmos que ao mesmo tempo vivemos em tempos diferentes, seja no mesmo espaço, seja em espaços muito diferentes. Imaginai apenas uma festa de anos de um vosso filho e reparai quantos tempos diferentes aparecem na festa: O tempo do vosso filho, o vosso tempo, o tempo dos avós, dos tios ,... vivem todos no mesmo tempo e simultaneamente em tempos diferentes: brincadeiras diferentes, roupa diferente, preferências alimentares diferentes, linguagens diferentes, cada uma destas facetas reflectindo um tempo que já ocorreu noutro tempo. É mesmo complicado entender o tempo.
Se nos transpusermos para outros continentes, então até parece que o tempo parou: um bosquímane, por exemplo, até parece que vive nos tempos pré históricos e, no entanto, também coabita connosco a mesma Terra. E mais: nós que temos tanta civilização, tanta tecnologia, tanta facilidade, acabamos por não saber como sobreviver nos desertos africanos...Mas o bosquímane sabe. Essa é que é essa! Precisaríamos de muito tempo para aprendermos rudimentos do que ele sabe. A realidade é que ele sobrevive naquele ambiente inóspito com instrumentos rudimentares e nós morreríamos em pouco tempo, apesar de tanto aparelho sofisticado.
Às tantas vivemos num tempo sem tempo tantos são os tempos e nós nunca temos tempo. Falta-nos tempo para tudo. Antigamente não havia telemóveis e os meios de comunicação eram tão lentos que até afligia, só que havia tempo para tudo: os terrenos andavam todos lavrados, limpos e cultivados, as propriedades eram divididas por muros feitos com pedras pequenas, aparelhadas sem argamassa e ainda hoje resistem, se alguém nascia ou morria a presença dos familiares e amigos acontecia como que por magia, enquanto hoje, com tanta inovação, em que instantaneamente por correio electrónico, por sms, via skipe, a bem dizer, fazemos coincidir o real com o virtual, e ninguém, ou poucos, aparecem. Outros tempos! Sendo objectivamente o tempo o mesmo para todos, até parece que é diferente para cada um..
Volvamos ao tempo em que o tempo de criação de um porco doméstico era, em média, uma no. Criado sem aditivos farináceos de engorda, era mimado com viandas  resultantes do aproveitamento de todos os restos, a que se juntava, à laia de tempero, um pratinho de esmalte de farelo. Claro que o tempo de crescimento era muito mais lento. Só que isso fazia com que a carne fosse muito mais saborosa e os enchidos unissem melhor, deixando-nos os dedos untados por uma gordura temperada que lambíamos com sofreguidão. Já pouco se vê disso, nos tempos que correm.
Quem desta vez matava o porquinho era o ti Chico Rolo. O matador era o irmão Zé e entre os convidados estava também eu. O filho, também ele Chico, mais familiarizado com o animal entrou na furda com uma corda já pronta com nó corredio, para pear o animal. Com maior ou menos dificuldade, Chico lá atou a pata traseira do bicho, o mano Zé abriu a porta da furda, enquanto Mné Chquim com um caldeirinho com milho, ia chamando o desgraçado:«fecá, fecá, fecá, toma, toma, toma...».Chegado perto da banca era preciso tombá-lo, meter-lhe um cordel na boca e apertar-lhe bem o focinho, segurá-lo firmemente, deitá-lo na banca, amarrá-lo comédado e deixá-lo em posição adequada para Zé Rolo lhe espetar a faca. Não foi nada fácil: o porco era valente, o terreno estava escorregadio da chuva, tudo escorregava, inclusive o próprio porco devido à morrinha que caía e, para cúmulo, o rabo do porco era saroto, pelo que ninguém lhe podia pegar por trás para o conseguir ajudar a imobilizar. A custo lá se levou a tarefa a cabo e na conversa enquanto se saboreava a meloreja, lá se volta à narrativa e se realça de novo a complicação que é ardulhar um porco no chão quando tem o rabo saroto." Quando é comprido, afiançava Zé Labouxa, vizinho, um homem, bota-lhe os gadapunhos e o animal é como que fica sem metade da força, quando se lhe pega com alma ao rabo". Todos concordaram e a conversa depressa passou para o tempo que «num dava pra fazer nada, estava tudo encharcado, e nem o gado podia sair, era só a poder de comida à manjedoura», e mais isto e mais aquilo até que se passou o tempo e era tempo de cada um ir à sua vida mesmo que o tempo atmosférico não ajudasse.
E eu também tenho que me ir, cassenão não vou a tempo de chegar a tempo do tempo acordado para uma conversa entre amigos numa tertúlia gastronómica em que o tema é exactamente o tempo.
A ver se não demoro tanto tempo a contar-vos mais histórias das terras xêndricas.
XXXXXXXXXIIIIIIIII GGGGGGGGGGGGRAAAAAAANDDDDEEEEEEEEEEEEE



segunda-feira, abril 06, 2015

A NOSSA FALADURA - CCXXXIV - SARAPOTO

Muito se tem discutido sobre o que seja e o qual o valor do que vulgarmente chamamos de opinião. Creio, no entanto, que talvez tenha sido Platão que a colocou no seu verdadeiro lugar. Ela está muito perto da ilusão, ou seja, da confusão entre sombra e realidade. De facto, não é difícil tomarmos por real aquilo que apenas nos parece ou que apenas se parece. Muitas vezes somos mesmo teimosos persistindo em asseverar o que afirmamos, não ouvindo quem connosco entabela conversa. Confundimos amiúde opinião com comentário, bitaite, ..., e, iludidos nessa pseudo-opinião, agimos em conformidade com ela, sem procurarmos fundamento seguro. Platão vai mais longe e junta ilusão à crença. Considera mesmo que uma crença verdadeira justificada origina conhecimento seguro. Ora, isto nem sempre é verdade, porque podemos partir de pressupostos que julgamos indubitáveis e garantimos, iludidos pela crença, que o que dizemos é verdade e não pode ser de outra maneira. Se alguém nos contradiz chegamos ao cúmulo de acabar com a dialéctica com o famoso aforismo: fica com a tua que eu fico com a minha.
Ora a opinião, enquanto vista como uma ascese para o conhecimento verdadeiro admite em si mesma o erro. Por exemplo, e sirvo-me de Gardner, se me habituei a olhar para um relógio e ele sempre me deu horas certas, penso que agora que olho para ele, também me está a dar a hora correcta. Não me passa pela cabeça que desta vez o relógio se tenha avariado ou simplesmente atrasado por velhice da pilha e, em consequência, pauto a sucessão da minha vida normal, em função da informação horária fornecida pelo 'infalível 'relógio. Só tarde e às más horas é que me dou conta de que, afinal, o relógio me enganara. Dito de outro modo: nem mesmo as crenças devidamente fundamentadas, justificadas por vezes sem conta e tidas como verdadeiras são insuficientes para nos garantir um conhecimento verdadeiro.
Para além disso há a natural tendência  para alijarmos a culpa para o outro. O outro, o grande outro como gosto de lhe chamar, só nos faz falta para pormos nele a culpa do que não nos acontece como gostaríamos que nos tivesse acontecido.
Desde logo, na Bíblia ficou escrito que Deus nos criou à sua imagem e semelhança. Ora, se lermos bem, entramos numa contradição original: se Deus nos fez à sua imagem e, sendo ele, por natureza, o Bem, então a sua obra devia agir como Ele: apenas praticando o bem, já que no efeito não pode haver mais que na sua causa, ou Lavoisier é uma balela. Volvamos à Bíblia: Deus olhou para o que tinha ordenado que se fizesse e viu que tudo estava bem feito (seria, de facto, um contra senso que  Deus omnipotente  tivesse que se esforçar para fazer o que quer que fosse, ou ainda que tivesse que emendar a mão para corrigir o mínimo erro que fosse) . Entendamo-nos: está escrito que no princípio era o Verbo, isto é, a palavra. E a palavra chave do Génesis é FIAT, isto é, faça-se ou seja feito, como se queira. É também assim no Pai Nosso onde se diz: FIAT voluntas tua= seja feita a vossa vontade).
Reparemos, todavia que Deus só ocupa seis dos sete dias da semana. Pois é, o sétimo ficou para o homem. Cabe perguntar: porquê e para quê. Ora, está bem de ver: para o homem fazer asneiras. Para fazer o Mal. Só que, e dando razão ao atrás dito, o homem não podia ficar com a culpa e vai daí culpa a mulher que ele próprio tinha requisitado a Deus para não se sentir sempre só, mas esta como era derivada do Adão originário, também não queria a culpa e, vai daí, transpõe-na para a sedução da serpente... Ou terá sido tudo também resultado de um planeamento divino, para que, efectivamnete, o homem nunca pudesse ter os poderes que ele tinha. Deus não poderia expulsar Adão do Paraíso de motu proprio. A responsabilidade, ou se preferirmos na linguagem bíblica - a culpa - nunca poderia recair sobre o próprio Deus. Assim, Ele também alija a culpa para o outro - para o homem -. Ele é que desobedeceu às ordens e portanto auto expulsou-se do Paraíso. Ou será que Deus tinha planeado isto tudo e assim, ao fim, seria ele o culpado? Aconselho-vos a ler um filósofo irlandês contemporâneo: Richard Kearney.
É um facto que nunca vemos o outro como o Bem. Há-de ter sempre defeitos. Perfeitos, só nós e as nossas opiniões. Mainada. Somos mesmo sarapotos.
Alma de Sino tinha um Ford Cortina de cor esquisita que custava a definir entre o anil e o turquesa. Aquilo não era um carro era um todo o terreno. Quantas lebres morreram debaixo daquela viatura que entrava pelas aradas com a mesma velocidade que andava em estrada!... Alma de Sino era um técnico de electrónica muito avançado para o tempo. Tinha freguesia de todo o lado para lhe arranjar os rádios avariados que nenhum outro técnico era capaz de compor. Vi-lhe mesmo fazer uma televisão a preto e branco, de origem: desde a armadura em madeira até toda a encruzilhada de fios de diferentes cores, soldadura de cada uma das peças, até ao fechamento. Trabalhava como um lírio. Ainda lá vi muitos jogos de bola. Um dia à noite estava combinado um petisco de lebre na Rosa. Só que ainda não havia lebre... Por tal azar o Ultra Cortina resolveu fazer gazeta e não pegou. Alma de Sino ainda fez uma série de matrafuscas, mas nada. Mas o petisco tinha que se fazer... Foram ter com Tchinchas e lá o convenceram a ir ao caminho da Ribeira da Ceife, até perto da charca do Figueira, do Pedrógão, "para limparem o sarampo" a uma. Foi rápido até que viram uma, mas Tchinchas que não estava treinado a atirar em movimento errou os dois tiros. Levou rodas de sarapoto, azelha, ceguinho e afins e Nosso Cabo Chico, salta para cima da carrinha e passado pouco tempo com um trabuco que ele próprio construíra virou uma lebracha de pantanas. Só que era pequena para os convidados...Alma de Sino diz para Coiote Pete que na altura conduzia: «Bota cá o volante que eu já resolvo isto num foguete». Virou a carrinha de caixa aberta em sentido contrário atou uma tábua presa por arames às laterais dos taipais, arranca com calma e vê uns olhos a brilhar. Confere que se tratava de uma lebre, mete pela arada e não tardou o animal tinha levado com uma traulitada com a tábua e ainda estrebuchava quando a fui apanhar.Alma de Sino auto vangloriava-se: «sois todos uns sarapotos; se num fosse cá o Mnel comíeis mas era pão com molho».
XXIIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGRRAAAAAAAAAAAAAAANNNNNNNNNNNNNDDDDEEEEEE